31 janeiro 2006

Mínimo a dizer














O calor infesta o sul do Brasil.
A vida não ergue sombras.

Tenho tangências dentro.
Nenhum silêncio.

Um poema nasceu contra mim
no mesmo instante em que decidi não sê-lo.

O tempo fodeu janeiro.
Ainda virgem, espero a minha vez.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Eliana Molinelli

C. Ronald

Livro: Todos os Atos

Continue assim como fez antes despido
em fotos 3x4 nessa vida que não pertence a
imortalidade
acredite
há um Senhor bem escuro dentro de você
não é o movimento de sua mente
então aflijo-me
mais as sandálias me apertam os dedos
deprimido como estou
igual a uma fechadura de porão
onde se guardam roupas de festas passadas
bebês de costas embaçados
é algo assim neurótico como traças
e cupins que não dão nada de volta
nenhuma boa ação e eu sentado na mala que me leva
para fora então eu penso que a mentira
deve estar nos ossos ou nessa dentadura de padre a
rir
então eu olho para o altar e vejo santos cheios de
desculpas




C. Ronald

27 janeiro 2006

Pálpebra

Tem um poema meu, inédito no

SOBRE A PÁLPEBRA DA PÁGINA

atendendo ao gentil pedido do Carlos.

Passem por lá, não por mim, mas por vocês, porque se trata de um dos blogs mais criativos destas paragens. :)

Rubens

Certa vez ele pediu:
- Casa comigo, não sei viver sem você.
- Não posso, porque eu sei viver sem você.

Deveria ter ido embora, abandonado tudo, buscado amor em corpo mais fácil. Incapaz de ser razão. Incapaz, foi ficando, vinha sempre que ela o chamava:
- Preciso de ti, hoje. Não falte.
Enquanto caminhava para mais um encontro feito apenas de suor e carne, se prometia nunca mais, última vez, amor próprio, chegar lá e dizer todas as verdades engatadas na garganta, chegar lá e dispensá-la, ausentar-se, mas quando recebia nos olhos a nudez, o maravilhamento de tê-la em suspenso, esquecia o ensaio, esquecia-se homem usado. Sempre tão poucos estes momentos, não os jogaria fora com orgulhos desnecessários. Foi assim desde que ele a conheceu. O mesmo jogo, as mesmas ordens coordenando a ação. O sempre inútil ensaio de palavras ríspidas que diria quando a visse. Discurso derruído ante a visão. Jeito pouco de calar o medo.

O calor vinha se acumulando durante toda a semana, mas naquele dia estava insuportável. Tinha recebido mais um telefonema dela:
- Vem, traz gelo e loucura. Estou precisando.
Como sempre havia cumprido o ritual. Ensaiou negativas, desvios, atrasos, não idas, fugas. Chegou na hora marcada. Nas mãos, um pacote de gelo e sofreguidão, dedos ágeis que ela elogiava, a língua por trás da orelha, o amor colado na parede, amaram-se fogo, aceitando o calor do dia, solarizando-se no que tinha que ser, vestindo-se de gelo para que a carne agüentasse, gemendo, desidratando-se, tratando o que podiam de prazer. O gozo correndo os poros, o calor, o calor, o gelo, o suor, as múltiplas carícias, os movimentos, os gemidos já crescidos, gritos agora, o esvair-se. Ela o olhou agradecida. Ele traduziu este olhar como uma declaração de amor. Ele a viu aberta. Disse calmo, pois gostava das palavras:
- Eu te amo.
Ela, adormecendo e fechando-se de novo, despediu-se:
- Tudo bem, não faz mal.

® Rubens da Cunha

Ilustração: Juarez Machado








26 janeiro 2006

C. Ronald

Livro: Cuidados do Acaso

Amanhece por dentro e a noite continua
a destruição na casca. Ela com seus famintos
vermes em peneirados ruídos de sarcófagos;
e eu como criança. Grito à beira do meu sêmen.

Nele as árvores crescem, o fruto não vem
à toa se muda a paz no meio da folhagem.
Mexe-se no abandono para cair mais tarde
como semente e passa do verde a outras cores.

Um detalhe confiante no todo. Sozinho
é que espera o começo, mesmo apodrecendo.
Tu apodreces também, colhido sem as bocas

que se transformam em gosto. O gosto da mulher
geme apenas no ouvido entre crestadas fronhas.
Desperta-te a confiança e um caracol se estende.

24 janeiro 2006

Andante


Falaram-me da impermanência. Eu não acreditei, disse-lhes que ficaria. Eu choraria meus mortos com agulhas fincadas nos lábios e dentes quebrados. Eu agüentaria a dor porque sou homem. Isto basta para ficar.

Falaram-me então do desejo acossado dentro do espírito. Eu não sucumbi. Disse-lhes: o desejo é vento. O invisível não se acossa. Eu o manteria livre e por essa condição longe de mim.

Argumentaram sobre a inquietude danosa da poesia. Eu fingi desatenção. Mas sob os pés fervilharam estiletes, sombras, víboras e versos. Desde aquele instante, ando grunhindo meus dias. Não tenho mais sossego, cadeira, poço. Fui alçado a rio, albatroz, nuvem, papel.

Rubens da Cunha
Ilustração: Francis Bacon

20 janeiro 2006

C. Ronald

Livro: Cadeira de Édipo


Uma folha em branco quando nossa oferta já está
escrita. Alguém virado para o revide
não surpreende a noite. Dá igual claridade ao dia
por todos os acontecimentos do homem.
Ser só na própria espera como ainda são os bichos.
Datas apagadas
e nomes esquecidos
quando há uma parte maior do nosso amor
fora do infinito. É quando o mundo investe
contra a permanência do luxo. Por que
não tentamos como vivos um outro número
de telefone? Certamente nos atenderiam santos
e anjos por cima do próprio brilho.

19 janeiro 2006

Expulsão e paraíso compõem rotas da fé.
Esquálidos arremessos de esperança
sustentam o que será depois.
Nos altos, um Deus que gosta de altares.
Por aqui, uns fiéis que gostam de machucar joelhos.
Entre tudo, as catedrais da alma em culpa.





® Rubens da Cunha
Do livro: Casa de Paragens (inédito)

18 janeiro 2006

16 janeiro 2006

o louco e seus fantasmas

hoje não tenho nada a dizer. ainda assim insisto em abrir a porta e gritar impropérios às senhoras que passam. levantem as saias e saiam correndo, doces meretrizes. as damas assustam-se, não com a ordem, mas com o adjetivo inesperado para tão amarga atividade. hoje não tenho nada a fazer. ainda assim insisto em cuspir sobre a cabeça dos homens. não gostam. alguns vêm me agredir. deixo a porta aberta e ofereco a cara. foi o que cristo mandou fazer. nenhum teve coragem de encostar em mim. bêbado, louco, depravado, adjetivam-me. nada disso me comove. hoje não tenho nada a acontecer. ainda assim insisto na insônia. os olhos fecham, a boca seca, o corpo cansa, mas eu não durmo. não quero esta morte. tenho medo. ninguém sabe, mas eu tenho muito medo de tudo, por isso faço estripulias. finjo coragem quando sou tremor por dentro. eu sou uma mentira. disseram-me isso e eu acreditei.custa muito ser gente. não tenho este dinheiro todo.
ele nos chamou de meretrizes doces. eu e minha irmã. ela riu. ela ri de tudo. eu fiquei com isso na cabeça. será que ele sabe do amargor que é vender o corpo? não deve saber. grita isso para todas, mas em mim veio tão dentro do coração. fico pensando nisso enquanto este aqui não termina nunca. quase esqueço de gemer.

o cara cuspiu em mim. fui lá, vou meter a mão na fuça deste puto. ele abriu a porta e só faltou dizer bate! não tive coragem, saí tímido. nunca vi tanta ousadia, tanta abnegação. deu inveja.
ele não dorme. eu também não. ele grita, cospe nos passantes. eu fico à deriva. apenas vejo outro fazendo o que eu deveria fazer. é a vida sendo-me paisagem.igual a sempre.
® Rubens da Cunha

13 janeiro 2006

C. Ronald

Livro: Como Pesa!


Não sabes disso,
nem a pedra dominada pelo musgo.
O dia volta com freqüência proibida
e sempre transgredida.
o “globo da morte”, exibição de impacto
no meio da platéia informe,
um ônibus e um automóvel cruzam o século
na maior velocidade. Todos,
todos os arrepios virgens
do microscópio te levarão de vencida.
Humano é o pior vocábulo.
Esconde-se no porão das igrejas
muitas coisas difíceis
para cérebros de anjos e úteros de viúvas.
Iguais em tudo. Quase!
Mas nunca o quilate dos ossos.
Certamente alguém virá para lacerar a
mínima inocência, prevenir os dorminhocos da
Odisséia
e se ainda possível enterrar
nos cegos as unhas.


C. Ronald

06 janeiro 2006

Ferrugem dentro



a falta
alojou-se no pulmão esquerdo

esqueceu o sangue
a vergonha,
as verdades do rosto

não quis filhos
trilhas sonoras
teatro

tem medo
um resto de cigarro
um tanto de culpa

A falta não tem sede
ausentou-se da luz
e enferruja-me por dentro


® Rubens da Cunha
Ilustração: Marvella Correa

C. Ronald

Marco Vasques - Anexo - Como você se sente sendo reconhecido pela crítica como "o poeta da profundidade, o poeta-filósofo, o poeta hermético" num País onde a educação é tetraplégica?

C.Ronald - Todo mundo ou chama a minha poesia de metafísica, ou de hermética ou filosófica. Se chamar de metafísica eu aceito, pois um dos maiores poetas que o mundo teve, e que foi rotulado pelo T. S. Eliot como metafísico, foi o John Donne. Então eu aceito o metafísico. O hermético? O próprio T. S. Eliot nos dá uma lição, pois ele diz que a poesia vem e prescinde de explicação. Ela nasce. Agora se é difícil de o leitor entender ou fácil, isso aí não é um problema do poeta. O texto poético, uma vez criado, é doado ao leitor, vai depender dele, da sua inteligência, da sua abertura à linguagem e ao mundo poético. Já, por outro lado, eu fico extremamente indignado quando chamam minha poesia de filosófica. Poesia e filosofia são áreas muito distintas. Muito mesmo. Isso é fruto da ignorância (e ela predomina no nosso País). Só existe uma grande filosofia num país quando existe um grande poeta; veja a filosofia grega, a latina e a alemã. O poeta é o pai da filosofia, mas sua poesia não é filosofia. O poeta é fruto da intuição e a filosofia é racionalização. A intuição poética vai precisar de reparos, de aparar as arestas, de construir uma linguagem, o poeta vai tentar direcionar sua intuição, mas jamais trabalhar só com a razão, porque a poesia morre.

Livro: Gemônias

Não digam que o limo é vegetal
quando é mais que isto nas paredes da casa.
Tanto apuramos do mito em seu alvéolo pré-histórico
e da técnica do assombro que o amor se acostuma
às manchas que o acompanham. É sempre o amor
mesmo nas partes em que não chega o sol,
É o ser na falta.

Ali medalhas pela insistência da umidade
na matéria que erigimos, pois cada dia
baixa o infinito transferindo os signos da grandeza
à soma de um gesto. O limo é vegetal embora
não tenha tronco nem pássaros, misterioso
como oráculo. O limo como o amor é a precisão
da beleza infiltrada nos olhos.

E os olhos são dos que nem sempre se abraçam;
valem algo nesse canto associado à lembrança ou
tentam de baixo o amor transformando-se e vivendo
de uma coisa velha garantida na solidão.

Surpresa

A primeira surpresa literária do ano foi o poeta Valter Hugo Mãe
Autor português. Recebi de presente seu livro Útero,
Para maiores viagens, aqui o sítio do poeta
Aqui o seu blog Casa de Osso

O livro útero, apesar da independência dos poemas, é para ser lido na totalidade, pois só assim é possível ter uma noção do percurso simbólico, metafórico e existencial criado por Valter Hugo Mãe.

Amostra grátis do que me fez a cabeça no último dia de 2005. Aproveito também para agradecer Victor Domingos que me enviou o livro, outro poeta da Pátria mãe que merece ser conhecido.

---
as árvores como
vento implume ou
lápide de um antigo
ser alado

deus ou voz extensa e eu, no
sopé da montanha somos
espantalhos no terreno da alma

---

alguns ainda se
iludem com adocicar o
corpo, fazem-no em
pânico ignorantes do
fermento que é para a
alma, ficam gordos
preparados para serem despojados
das carnes que inutilizaram, e já os
junto à terra como se
evadidos para o pó, a
criarem esperanças
parvas nos outros.

04 janeiro 2006

Autores Catarinenses: C. Ronald


C. Ronald, é o mais difícil poeta para se adjetivar.

Não há qualificação que o comporte. Sua poética é uma selva de sensações e significados. Num primeiro momento, é como se fôssemos estrangeiros em nosso próprio idioma. Ler C. Ronald é ir inventando, descobrindo, tateando pouco a pouco o mundo poético criado por ele. É muito fácil desistir de sua escrita, mas uma vez embrenhado nesta selva, as marcas serão indeléveis.

Para C. Ronald “a poesia é a forma da mente, é o milagre que a mente desfruta”

É um poeta em constante ebulição. Sua obra está nos seguintes livros
As Origens – 1971
Anua – 1975
Dettagli dell’Assenza – 1975
Dias da Terra – 1978
Gemôneias – 1982
As Coisas Simples – 1986
Como Pesa! - 1993
A Cadeira de Édipo – 1993
Cuidados do Acaso – 1995
Todos os Atos – 1997
Ocasional Glup – 1999
A Razão do Nada – 2001
Os Sempre – 2003
---
Como se trata de uma poética muito especial, não vou concentrá-la num post apenas, mas vou espalhá-la ao longo do mês. Janeiro será o mês de C. Ronald aqui no Casa de Paragens.
Comecemos, pois:
Livro: As Origens

A Dádiva

Eu te abraço lágrima vazia
não estás com os outros estás com o homem, com a espiga
que muda de sala
adormeces quando a ágil nicotina dos faróis
evapora com a tragédia
Usamos a tempestade sem prever a raça de insinuações
cerzidas após a guerra
Tu és a indulgência nesse campo ensinado e há
um incêndio além das janelas
um pássaro inquebrável pousa no pequeno
confessionário de erva agora
somos filhos da estação nessa paz.

03 janeiro 2006

retalho surreal de um pecado


pedaços de pecado
cimentam as horas

desvelo o véu
do respeito
até sangrar-me
céu e vulva

a vida acometida
em aliteração
promete o gozo baixo



® Rubens da Cunha
Ilustração: Décio Soncini

02 janeiro 2006

Primeiro


o tempo aferroa seus filhos

apregoa-se nas unhas
vértebras e tornozelos

gosta de ver a carne macerada
entre rosas e vidros

gosta de não morrer
a cada 1º de Janeiro.




® Rubens da Cunha
Ilustração: Carla Gonçalves