29 novembro 2005

Anotação de agora



além da janela
montanhas transparecem
nos olhos

débil
como devem ser os cães
pergunto-me:

por quê?



® Rubens da Cunha
Ilustração: Edvard Munch

28 novembro 2005

Autores Catarinenses: Alcides Buss

Retornando à uma das idéias que originaram este blog, eis mais um autor catarinense.


Alcides Buss
Alcides Buss nasceu em Salete, Santa Catarina, Formado em Letras, com mestrado em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina, foi o criador dos Varais Literários; é diretor da Editora da UFSC e Publicou, entre outros, Transações, M.A.L. Edições, 1989; Natural, afetivo, frágil, Edições Athanor, 1992; Nenhum milagre, Editora Letras Contemporâneas, 1993; e Sinais - sentidos, M.A.L. Edições, 1995

Buss é um dos mais profícuos poetas atuais. Vem atuando na literatura desde a década de 70, mantendo um diálogo muito direto e muito aberto com seus leitores. É um ativista da palavra.

Incubência

Descubro meu ser
distante da voz que ordena
e faz, do homem,
sapatos, suor e cansaço.

Descubro-me longe
das leis e mais leis
nascidas por graça dos fortes;
dos mitos plantados
à porta das casas, dos olhos,
das bocas.

Des-
cubro-em perto de mim,
do centro vital que palpita,
do núcleo que é claro
e humano.

Cubro-me
de poucos sentidos
e vasto silêncio: feto
dos anos dois mil.


Do livro: Transação
M.A.L Edições 1994


Sub-Sob, Preceito

Noite vem-vem
moendo farinha de trevas...

No convento, irmãsmente,
uma sasl diz-não-diz,
sencolhe
disfarçando história.

- Êpa! meu desconfiômetro sexaltou!
- Será o que será?... Enfie um olho
no buraquinh da chave
e filme as image's.

A menina não mais pôde
extrair pro mundo
o seu olho - tãoencheu demais.

Suspense:
corações que gemem
no percurso - túnel.

Do livro: Ahsim
Editora Lunardelli - 1976

O Boi e o Homem no Tempo

Boi,
teu espanto é o meu
e na mesma viagem
ficamos.

Serás minha carne,
serei teu destino.

Desatino.

Do livro: O Homem sem o Homem
Editora Noa Noa - 1982

Carne

Descortina-se a carne
à luz da noite,
e sexos entram nos sexos
sem fim.

O prazer salta de lado
a lado no corpo exposto,
fendido,
sonho e matéria em riste,
lançada.

Entre o poste e o mundo
o chão não serve
no medo, nem cabe na grave moral
escondida, enfiada
no fundo dos seios.

O prazer salta na boca,
na língua, nas fibras
de seda;
salta
no baixo estampido
atrás das membranas.


Do livro: O Homem e a Mulher
Edição do autor - 1980



X

O poema é quase nada.
A folha,
o vazio
e alma
Este trio vulgar
já é capaz
de alimentar o sonho
que se faz palavra.

O olho arguto, porém,
impregna o sopro verbal
com o vinho do cálice
distante.


Do livro: Cinza de Fênix & Três Elegias
Editora Insular: 1999

Filmes


As bicicletas de Belleville
de: Sylvain Chomet

Animação francesa de 2003. Um espetáculo visual único, ousado. Totalmente oposto ao padrão americano de animação. As Bicicletas de Belleville narra a tragetória de "Champion, um menino solitário, que só sente alegria quando está em cima de uma bicicleta. Percebendo a aptidão do garoto, sua avó começa a incentivar seu treinamento, para fazê-lo um verdadeiro campeão e poder participar da Volta da França, principal competição ciclística do país. Porém, durante a disputa, Champion é sequestrado. Sua avó e seu cachorro Bruno partem então em sua busca, indo parar em uma megalópole localizada além do oceano e chamada Belleville. "
O roteiro e a concepção visual é também de Syivain Chomet. A preparação do garoto, a viagem alucinada de pedalinho para cruzar o oceano, a solidão em Belleville, tudo é visto com um olhar terno, surreal. Os personagems possuem traços diferenciados, exagerados, ao ponto da caricatura, mas a história é tão humana, tão cativante, que o mundo de Belleville, com suas cantoras que comem sapos, seus mafiosos, seu cão magnífico, nos faz entrar facilmente no mundo proposto por Chomet. Obviamente é preciso aceitar a proposta inovadora do francês. Para os anestesiados pela fórmula Disney, pode ser mais complicado.
Um dos pontos altos do filme é que ele é quase todo mudo. Palavras são prescindíveis diante da beleza.
Cena máxima e para entrar em qualquer lista das melhores já produzidas pelo cinema de animação: a travessia do oceano com pedalinho.


O Filho da Noiva
de: Juan José Campanella

Na última década, a Argentina produziu o melhor cinema da América do Sul. O país que viveu uma crise profunda conseguiu impingir em seus cineastas uma criatividade fascinante. Nove Rainhas, Plata Quemada, Valentin, Kamchatka, e este O Filho da Noiva revelam um cinema feito de simplicidade e boas histórias. O Filho da Noiva narra um período na vida de Rafael Belvedere, feito pelo onipresente Ricardo Darín, um quarentão sem tempo para a namorada, a filha, para a vida, enfim. Partindo de uma premissa totalmente clichê: Rafael sofre um ataque do coração e repensa sua vida, o que poderia gerar um melodrama açucarado, nas mãos firmes Juan José Campanella e com um elenco afinadíssimo, acerta o tom exato entre a comédia e o drama. O espectador é convidado a conhecer a vida atribulada de Rafael, e perceber com ele que há dramas maiores, que talvez ainda dê tempo de ter um sentimento como o do seu pai, que depois de 40 anos de casado ainda trata a mulher como se fosse a primeira vez que a visse. Pela intimidade deste homem, compreendemos o que aconteceu na Argentina, os sonhos destruídos, a vida cortada pela crise, mas percebemos também que apesar das forças externas, a simplicidade pode ser uma ferramenta bastante útil para se atingir uma vida com melhor qualidade. O cinema argentino vem provando isso a cada filme.
Cena máxima: o ataque cardíaco de Rafael. Surpreendente.



Marcas da Violência
De: David Cronemberg

O Império americano tem vísceras e cabe a cineastas como David Cronemberg expô-las. Este "Marcas da Violência", ou no original "A history of a violence" expõe não só a natureza violenta americana, mas a humana. Viggo Mortensen é Tom Stall, um homem pacato, que num ato de defesa de seu bar e funcionários, mata dois assaltantes de forma ágil e precisa. É o que basta para ir parar na mídia como herói americano e ter seu passado tão bem escondido nos últimos 20 anos exposto. Tom Stall construiu-se sobre uma mentira. O desmoronamento de sua vida é o que vemos no filme. Cronemberg é um cineasta com apego ao estranho, gosta da dubiedade, desde A Mosca até Spider, passando por Gêmeos e Crash, sempre estão lá os personagens atormentados, envolto em algum conflito interno, que não raro leva à loucura, por isso Cronemberg tem a fama de difícil. Aqui, a discussão é outra, a violência é genética? O quanto o passado de um homem interfere em seu presente? É possível uma transformação completa do indíviduo? São questões levantadas pelo filme mas nunca respondidas, pois apesar de ser um filme claro e linear, estamos falando de um cineasta que não gosta muito de mastigar os assuntos para os espectadores. O ponto alto do filme é a sexualidade explícita de Tom Stall com sua mulher Edie, (uma desinibida Maria Bello). Quantos filmes você viu em que um casal com dois filhos e mais de 15 anos juntos tem duas cenas de sexo voraz? A primeira para realizar uma fantasia, a segunda para nos mostrar que sexo e violência são ferramentas muito funcionais para demonstrar quem manda. Obviamente, este filme seria apenas mais uma historinha de vingança se caísse nas mãos de um dos milhares de diretores sem nome, e de um ator-porta como Steven Seagal, mas aqui temos Viggo Mortensen e David Cronemberg, aqui temos inteligência e nenhuma piedade. Se há uma coisa errada neste planeta, ela se chama humanidade.
Cena máxima: a cena de sexo na escada. Dolorida e excitante.


Nina
de Heitor Dhalia

Filme de estréia de Heitor Dhalia, um nome a ser visto com mais cuidado. Mergulhando na mente pertubada de Nina, (Guta Stresser) o filme começa como uma comédia dark e vai esquecendo o humor à medida que a vida de Nina piora. Misturando animação, som techno, drogas e poesia, temos a derrocada desta mulher frágil, contraditória: rouba um cego mas ajuda uma prostituta, se droga mas não se prostitui de forma nenhuma. História livremente inspirada em Crime e Castigo. Retratando o centro de São Paulo, o filme, bem como o personagem, poderia se passar em qualquer grande metrópole, pois fala da solidão, do medo, da culpa, coisas bem universais. Bela direção de arte e fotografia, boa interpretação de Guta Stresser, distanciando-se de seu papel televisivo, e pontas de luxo, como Matheus Nachtergaele, Lázaro Ramos, Selton Mello, Renta Sorrah, Wagner Moura.
Nina é bem diferente do padrão globo que vem avalancando/atravancando o cinema nacional.
Cena Máxima: Um delírio de Nina em que um cavalo é espancado.



O Mundo de Leland
de Matthew Ryan Hoge


Leland é um adolescente que comete um crime. Mata um amigo com deficiência mental. O motivo do ato é o que vemos neste filme. Um filme tenso, triste, que vai se descascando aos poucos, estruturado em flashe backs, vamos mergulhando na vida de Leland, e de todos os atingidos pela tragédia. Seus pais, os pais da vítima, que por acaso era irmão da namorada de Leland, o professor do reformatório e escritor frustado. Narrado lentamente, como se quisesse refletir nas imagens a apatia, o distanciamento, a incapacidade de diálogo da sociedade americana, o filme se constrói sobre a agonia da desesperança. Em determinado momento Leland fala que ao ver um casal jovem se beijando, só consegue ver o mesmo casal depois de um tempo se traindo mutuamente. Este é um filme sobre a inutilidade da vida. O professor, vivido pelo sempre competente Don Cheadle, até tenta expor possibilidades e ter uma visão menos aterradora do futuro, mas sempre esbarra na muralha de pessimismo e indiferença que é Leland, feito com desenvoltura pelo jovem ator Ryan Gosling. (Prestem atenção neste nome, se não se perder no meio do caminho, vai render grandes performances ainda). Um filme incômodo, que deve dizer muito mais a sociedade americana, tanto que o título original é United States of Leland, com suas casas sem muro, seu mundo externo asséptico, mas por dentro desespero e dor comandam as ações. Mais um filme expondo as vísceras de nosso império.
Cena máxima: A seqüência final: "tudo vai ficar bem".

26 novembro 2005

A Culpa - Ponte Improvisada


Primeiro Rio

Sempre que a culpa cria seus
cortejos dentro de mim,
corto-me em metades:

uma, para exilar-me
no país do esquecimento:
este Vietnã que consagra
em rio, silêncio e sangue
o tudo quanto em mim
se fez sepulcro
vencedor da consciência.

Outra, para lamentar-me
no continente do remorso:
esta África descrita
em crianças mortas perpetuando
a fome dos meus rancores,
já que humano, carrego
a contragosto,
os perdões que não cumpri.


Segundo Rio

Ponte improvisada sobre
os rios da descrença, a culpa
me leva a uma das margens:

a da esquerda me requer
menos algema,
mais próximo da vidência,
mais pulso em adivinhar
os meandros fáceis da fé,
já que sou este homemfeto
ainda santo à tristeza.

A da direita, me precisa
pouco afeito à esperança
de nascer-me,
pois me sabe homemfêmea
menstruado em negações,
recebendo mês a mês
a não chegada de Deus.


Terceiro Rio

Transporto em mim um qualquer
vazio de culpa e tormento
que desagregou meus pólos:

ao sul, fui pai da inocência
perdida nos confessionários.
Desonra e pudor tangeram
o sexo de minha filha,
que agora,
feita em friez antes do tempo,
anda prenhe de desterros.

Ao norte, coube-me ser
filho do desvio e talhar
os costados de meu pai
a golpes de faca e coice,
até aprender
que a remissão é a pele
íntima do pecado

Quarto Rio

A culpa vende meu corpo
nas esquinas da aparência.
Invento meus dias em dois lados:

No de fora, ilumino-me
pelas salas de jantar,
mantenho impunes os quartos,
o porão,
e acrescento cortinas
para que o anoitecer
não desmanche o sol.

No de dentro, sou de cômodos
escusos, espaços ínfimos
para a alegria.
Sou decorado por noites
pênseis e prazeres mortos.
Frente aos amanhecimentos,
sou dos que amam quando fingem.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Gina Jrel

24 novembro 2005

Agradecimento

À Valéria, do blog PENSAR É UM ATO, que redimensionou um verso meu, aproximando-o da beleza explícita.

À Isa, do blog PIANO, que através de um convite redirecionou muitos de seus leitores a esta casa de paragens.

Dois blogs que merecem visitas constantes. Preparem os olhos.


ps. Investiguem cada um dos blogs e sites ao lado. Não estão aqui por acaso.

Fazer

Desusado, abuso os céus da noite caída. Um anjo pintado na parede. A verdade traça móveis e livros. Destroça-os. O que não li argumenta-se espera. Espúria conexão com o sonho. Nos rins, um álcool recém filtrado esmorece a oração. Raspo a pintura até chegar no osso. Era um anjo suicida e sem coragem, pediu que eu o matasse. Então, eu fiz a sua morte.
® Rubens da Cunha
Do Livro inédito "Casa de Paragens"

22 novembro 2005

Seguir
































espalhadas pela hora lápide
espelhadas no sonho cadeira

Vida e Morte
seguem seu ritmo formiga

eu
o morto aos poucos
sigo a nãodança dos putos

® Rubens da Cunha
Ilustração: Mario Gruber

19 novembro 2005

O Inventor


Inventei Deus, fui eu, eu fiz este cume de sentimento preso às alturas, podem acreditar, Deus só existe porque eu o inventei, como se inventam os dardos, os arremedos, os porcos, uns desertos diários, as secas, os contrários, eu inventei Deus como aquele outro cego, que amansava tigres, inventou o homem, como aquele outro dos corvos inventou o medo, eu inventei Deus, foi o que restou, o que me veio em inteireza, queria muito inventar a dor, mas um outro praticou tanto que conseguiu chegar antes de mim, nobre, marquês, não sou nada, um simples inventor de Deus, não sei como dão tanto importância para meu invento, essas paredes todas brancas, esses outros que entram com agulhas, sussurram calma em meu ouvidos, dizem que sabem, dizem que acreditam, não quero que acreditem, quero que vejam, que eu inventei Deus, ele é meu brinquedo, meu adorno, pedem mais calma, estou, estou, só diz pra mim que é verdade, que não se trata de uma mentira perpétua, que aquele outro da Germânia não matou meu invento, Deus é meu carrinho, minha bola, criança, não mais idade, dizem, tem que parar, tem que internar, não pode mais blasfemar tanto, dentro da igreja, saiu aos berros, como se Deus pudesse ser inventado, não entendo, fui eu que criei Deus, arquitetei seu livro, como aquele outro arquitetou a capital, planos, modelos, erros e acertos, eu não errei em Deus, foi tudo de primeira, como são os negócios acertados, louco dizem, não mais jeito, tem que ficar sob remédios, eu inventei Deus, não minto, por que não acreditam? Por que se esvaem? É um brinquedo, massa de modelar, eu faço o que quero dele: borboleta, peixe, maçã, trigo, faço o que quiserem, façam o que quiserem, temos que desistir, não boa hora, eu não inventei a morte, este foi o outro da Germânia, não, não o que matou meu invento, um outro mais raso, eu inventei Deus, com o que sobrou com as migalhas de Deus eu inventei o Filho e o Espírito Santo, e uma outra Virgem, hora de dormir, toma remédio, eu sei, eu sei, Deus é invenção sua, a santa de branco acredita em mim, eu não preciso mais mentir, eu não preciso perdoar Deus, como aquela das paixões, eu o inventei, não posso mentir sobre isso, Deus proibiu.

Rubens da Cunha
Ilustração: Bernardo Cid

18 novembro 2005

Sonho às três da manhã



O girassol é um circo de anões
reverenciando o calor amarelo de um Deus distante.
À noite, quando o Deus dorme,
os anões tornam-se sacrílegos:
impuros de branco,
vertem-se em louvores e comiserações.
Assustam-se à palidez da lua.
Dormem altos e perdoados, os anões.


Rubens da Cunha
Ilustração:
Vicent Grek

17 novembro 2005

ao Rio que nunca mais fui


Nos dias em que vagante, bacante, reconheceu terras novas, sopesou a poluição das ruas, a tristeza no ventre das meninas, um certo desandar, dessangrar nos tórax dos homens. Nos dias em que foi mendigo, vasculhou Rios desconhecidos, não reteve quimeras ou andrajos de felicidade. Foi sim um pormenor na distância, um hai-kai em poema épico. Belo e inútil.

® Rubens da Cunha
do Livro inédito: Casa de Paragens
Ilustração: Manabu Mabe

14 novembro 2005

Breve


adestrar-se à memória: cavalo de cimento

adestrar-se: repetir os truques sem o ímpeto dos impuros

o dia foi coice

eu sei porque eu estava lá
e o cabresto me serviu




® Rubens da Cunha
Ilustração: Marcelo Grassmann

10 novembro 2005

Inventário de última hora

Estantes cegas
quadros desertos

tempo de reclamar
de inflamar o corte

portas de pedra
natureza de gafanhoto

fome e mais fome
nenhum verde
nenhuma verdade sobre o amor

(tudo dentro deste cofre:
o segredo jaz com o morto)

Filmes

O Agente da Estação
De: Thomas McCarthy
O "Agente da estação" é um filme minimalista, dentro do jeito John Sayles de filmar. Um destes achados nas prateleiras inferiores da locadora. O que poderia resultar num dramalhão, ou numa excentricidade, afinal o ator principal é um anão, resulta num filme de proporções humanas intensas. Peter Dinklage é Finbar McBride, um homem solitário, que não agüenta o peso do olhar alheio sobre sua estatura. Ao herdar um velho depósito às margens de um trilho de trem, Finbar acredita que pode unir as duas coisas que mais quer: uma vida isolada e a sua paixão por trens. Engana-se inteiramente, pois surgem Olivia Harris (Patricia Clarkson) e Joe Oramas (Bobby Cannavale) com suas respectivas solidões para se incorporarem na vida de Finbar.
Atuações contidas, roteiro enxuto, sem manipulação do expectador (esta praga do cinema americano) o filme vai se construindo à medida que a amizade dos três se consolida.
Da forma mais sutil possível, percebemos que cada uma destas pessoas melhorou um pouco, deixou de lado suas idiossincrasias e, se não conseguiram encarar seus problemas de frente, pelo menos pararam de fugir deles.
Apesar dos "indies" americanos já estarem também presos às fórmulas, vezenquando, surgem pequenas obras-primas, que servem para provar que o mais competente cinema do mundo ainda tem salvação, basta não gastar muito dinheiro.
Rubens da Cunha

09 novembro 2005

Solidez


Doem-me as costas.
O lado direito.

A dor vem da má postura frente a invernos teimosos
e do esconder-me atrás de dentes amarelos,
caspa e uma magreza de alma.

Doem-me as costas,
não porque quero ou preciso,
mas porque nas ausências arquiteto uma vida de granito,
ou granizo,

ou qualquer coisa que sólida,
substitui-me as células.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Carlos Araújo

05 novembro 2005

Pequenos trechos de uma insônia


(...) Calores assombram a noite no sul do país. Vejo caminhões, caminhantes, andarilhos que nunca serei. É quase meia-noite nestes metros quadrados que o destino me deu. O poema ainda é um gesto na cabeça. Ou um lapso, talvez de lá nunca saia, talvez aconteça no próximo instante. Como diria a mãe Clarice “que não me entendam, pouco se me dá”. O que quero é distância e silêncio. (...)

(...) Há um mundo rorejando ao meu redor. Gato invisível. Tigre transtornado em solidão. Há um mundo vestido de catarse, balançando um pêndulo na frente dos meus olhos. O que sou em cegueira deixo de ser sol. Como diria o pai Gullar “Uma parte de mim, pesa, pondera: outra parte delira”. O que quero é fascínio e madrugadas rotas. (...)

(...) As ruas da cidade estão esvaziadas. Dentro das casas os pecados acontecem. Um ou outro desavisado anda por estas horas. Não o imagino um igual. É apenas mais um perdido. Nada está aberto, nada está comércio. Nem as prostitutas estão vivas. Enquanto o sono não me visita, penso em Álvares de Azevedo, tão jovem, tão cria de seu tempo. E eu? Sou filho de que tempo? O de agora morre, me fez órfão. Grito para os muros o que o irmão Carlos sussurrou nos meus ouvidos: “o tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. O que quero é paciência e louvor. (...)

(...) No quarto, a cama, os lençóis amarrotados sem nenhuma história de amor para contar. Na parede, cartazes de filmes, fezes de lagartixas, sujeiras aéreas. Tenho preguiça de limpar. Quero dormir, preciso! Quando o dia se impuser, terei que ser comum, visível, terei que ser ‘bom-dia', ‘pois não? posso ajudá-lo?'. Terei que ser meu disfarce. Sem falhas. Sem gretas por onde saem-entram as dúvidas. Conto carneiros, penso em Breton, em Virgínia. Mantenho os olhos fechados. Acontece o sono. A insônia despede-se cantando o que minha filha Hilda lhe ensinou: "Como se te perdesse, assim te quero. Como se não te visse (favas douradas sob um amarelo) assim te apreendo brusco Inamovível, e te respiro inteiro”. (...)
Rubens da Cunha

04 novembro 2005

Mancha


subsolo
muitos carregam a mancha

alguns são tão bonitos que não mereço olhá-los

lá no mundo de fora carrego outra mancha
que não cabe no subsolo

finjo e gosto de fingir-me um desmanchado



® Rubens da Cunha
Ilustração: Livio Abramo

03 novembro 2005

Filmes

Old Boy
De: Chanwook Park
A coragem tem um nome: Chanwook Park , o idealizador deste filme. Parte de uma trilogia sobre a vingança, Old Boy é o segundo e único lançado no Brasil. Resumo básico: homem é seqüestrado, fica em cativeiro durante 15 anos, é solto e parte para a vingança. Nesta busca, ele vai descobrindo o porquê de seu destino e vai desmoronando psicologicamente e fisicamente. Visualmente magnífico. O personagem principal é interpretado com sangue pelo ator Choi Min-sik. Um filme de impacto, mas nada artificial, o impacto vem da crueza, da veracidade com que a violência e o desespero se manifestam. Sem musiquinha embalando a emoção, sem redenção do herói, sem nenhum tipo de julgamente moral. Os EUA já estão programando a refilmagem, duvido que mantenham um centésimo da coragem de Chanwook Park. Nem David Fincher nos melhores dias de Seven teria condições de refilmar esta obra prima, ganhadora de Cannes em 2004. O expectador aqui é tratado como o polvo vivo devorado por Oh Dae-su, o homem-vítima desta história. Filme feito para torturar o cérebro.





O Segredo de Vera Drake
De: Mike Leigh
O que seria de Mike Leigh sem seus atores. Dono de um método especial de filmar, que constrói seus roteiros cena a cena com os atores, Mike Leigh já apresentou ao mundo intensos dramas humanos, o mais famoso deles é Segredos e Mentiras, que possui umas das mais memoráveis cenas do cinema. Mais ou menos 8 minutos de câmera parada em duas atrizes no auge da capacidade de interpretação. Bem, voltando a "Vera Drake", Mike Leigh joga seu filme sobre os ombros de Imelda Staunton, que o carrega com uma suavidade impressionate. Vera Drake é uma símpatica e solícita dona de casa que na década de 50 ajuda moças pobres a abortar. O tema polêmico tratado com naturalidade, um elenco afiado, tão natural que nunca parece que está encenando, (esta é uma das caracterísitcas do cinema de Leigh, parece que a câmera nunca está ali, tal a veracidade das atuações) fazem do filme um drama seguro, intenso, para chorar e refletir sobre a hipocrisia que é o aborto. Enquanto as pobres abortam da maneira mais perigosa, as ricas fazem de maneira segura nas melhores clínicas. Sem concessões, tem uma das melhores cenas finais que eu vi até hoje. Mais um filme para os fortes.
® Rubens da Cunha