27 fevereiro 2006

Um



Fraco. O amor me faz fraco, eu gritava. Manifesto de vento. Estrume. Eu era um homem que desacreditava falácias românticas, um homem que celibatou-se porque não suportaria sucumbir a um sentimento. Era um homem avesso, tenso, coberto de mesuras e mentiras. Enquanto outros casavam-se, traíam, retraíam, tinham filhos e ex-esposas, eu esquivo, eu lapide sobre qualquer possibilidade amorosa. Isto eu era. As artimanhas. Esqueci-me das artimanhas, das teias orvalhadas, dos atavismos sanguíneos da paixão. Em certo dia, recebi de volta um olhar, um canto de boca vermelho, um todo corpo feito de cama e palavra. Eu sou agora um pasto de madrugada e gozo. Um vasto adeus à fraqueza.
® Rubens da Cunha
Ilustração: Antony Gormley

25 fevereiro 2006

Sobre a Pálpebra da Página

Tem um poema meu no Sobre a Pálpebra da Pagina, blog do meu irmão Carlos Souza de Almeida.

Passem lá e apreciem um dos mais criativos sítios da blogsfera.

24 fevereiro 2006

Nove

Tarde de folga. Ligo para esposa. Vou passear, comprar umas coisas que preciso. Depois pego o Júnior na escola. Centro da Cidade. Quase nunca venho aqui. O Instinto me guia. No cinema, um cartaz úmido com dois homens nus. Entro. Sempre tive vontade. O desejo de estar em um cinema de pegação concretou-se há muito em mim, a coragem é que nunca esteve próxima. Escuro. Ascotumar os olhos, acostumar as pernas para que parem de tremer. Olho para a tela. Um borrão qualquer em que quatro homens trafegam-se. Ouço gemidos para além do filme. Ao meu lado, vários. Quantos iguais a mim: fugidos, fugidios, duplos? Um qualquer se aproxima, carinha-me o sexo, ajoelha-se à minha frente. Desabotoa minha calça, desabotoa minha vida. Engole-me. Esvazio-me em sua boca. Já não sei quem sou. Pois o que eu era agora atravessa a garganta do outro, que já nem está mais aqui. Nada mais diviso. Aéreo, saio do cinema. Amanhã eu retorno. Amanhã, eu vou ajoelhar na frente de alguém para ver se volto a ser o que eu era.

® Rubens da Cunha

Luiz Miguel Nava

A Pátria-Mãe tem me agradado muito ultimamente.
Luiz Miguel Nava me chamou atenção demasiado. Diz muito o que eu quero dizer, e da forma como preciso dizer.

Taí um poema do moço.


O TÍMPANO E A PUPILA


Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos
se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão

ele próprio já também uma ferida, agora
que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.


Mais poemas aqui e aqui, na Revista Zunai,
Obrigado a Helena F. Monteiro, do blog Alicerces, que foi onde li pela primeira vez o Nava.

20 fevereiro 2006

Quatro

Eu era um homem pouco usado. Guardava-me sempre. Ouvi muito a voz da mãe: põe chinelo, cuidado com a friagem, cuidado com o sereno, não pisa na lama, vem tomar banho de novo. Cresci com isso. A primeira mulher tinha espasmos, espaços de tristeza, morreu antes. A segunda mulher partiu numa noite fria. Deixou bilhete: você tem cuidado demais, não gosto. A definitiva mulher não lava as mãos antes das refeições, anda descalça pela rua. Deita-se suada, sem sem tomar banho. Diz que me ama. Eu acredito. Chupo seus dedos, lambo seus pés, lavo com a língua suas outras cavidades. Frontal agradecimento à libertação tardia.
® Rubens da Cunha

17 fevereiro 2006

Sete


Acordo. Olho para o lado, dorme. As costas deslizantes. Se houvesse apenas tato entre nós. Levanto. O quarto vestido com seu olhar: quadros, cinzeiros, lençóis, tapetes, móveis, nada disso tem meu sim. Quando chegamos aqui, este era um espaço de vazios. Suamos tudo. Depois, o suor secou e foram brotando objetos, objetivos, temos que comprar, isso ficaria bom aqui, agora tá como quero. Fecho os olhos, muito dia ainda pela frente. No banheiro, higienizo o que sou.
® Rubens da Cunha
Ilustração: Antony Gormley

16 fevereiro 2006

Justificando...

Inspirado, instigado e seduzido por esta DONA, também vou escrever uma série.
Desfilarão por aqui alguns meninos e suas mazelas amorosas e carnais. O primeiro menino é o do post anterior. Os próximos virão em espasmos.

14 fevereiro 2006

Dois



Cabelos altos. Olhos vincados. Chumbo. Um retrato entorta a parede depois do amor mal feito. Nem suor nem mentira compõem estas horas ralas. Tudo o que temos é este degenerar-se na entrega, este ficar até o pó. Já sou a pele esfalerada, os dentros puídos. Sei que você também sofre a mesma escolha: ficar é igual a resignar-se, persignar-se neste altar de indiferenças. O que fizemos? Vejo em seu sorriso-vaso: 'o passado pouco importa, futurize a pergunta', desobedeço em silêncio e traição. Faço o que agüento nesta rotina de espera. Seu sorriso-porta me despede, me desorganiza os papéis. O amor quefoiumdia corta-se na cozinha. Tem mais coragem e sangue do que nós. Furto alguma pêra sobre a mesa e saio pelo outro lado da rua. Sem honra e sem paladar.


® Rubens da Cunha
Ilustração: Antony Gormley
ps. recomendo uma passada no site deste escultor, são trabalhos muito bons.

10 fevereiro 2006

C. Ronald

Livro: Os sempre

um trato com a poesia
mesmo que não existam pressupostos
dentro do peito
nem adição de vento registro de óbito
escrúpulos
pensando menos

só para a cegueira se imobilizar no branco
és tu que escuto
toda a devoção humana coaxa com a pata
na lembrança
é preciso lembra disso quando estiver seca
dividir a mulher em duas presenças

salta!

o sofrimento é comum
depõe à força as damas virtuosas
a lua e as estrelas nervosas
que até invisíveis interferem
na tua faina

desculpa se não é a pé
que percorremos a nossa inconsciência
mas na limusine da velhice agora descoberta

As manias

Instigado pela Tmara, eis minhas cinco manias

1 - ordem alfabética nos livros e cds, mas a mania maior é julgar, mesmo internamente, quem não faz o mesmo.
2 - contar degraus.
3 - quando caminho, vou arrancando folhas das árvores e arbustos.
4 - leio, antes de tudo, o último parágrafo do livro em caso de prosa. Livro de poemas, leio o último verso.
5 - quero ver todos os canais de televisão ao mesmo tempo.

tem outras, mas estas deixo para os psiquiatras e para os padres.

07 fevereiro 2006

Gritos esmagam estômagos e paixões.
Profetas ofendidos.
Uns escravos amantes do fogo

Um disfarce-mulher
enlameia meus solados de chumbo.
Algum suor que me é de direito.
Ombros frios.

Eleições sob rifles.
Gelo nos cometas.
Barcos mortos no Egito.

Velhice antecipada.
Silêncio fazendo ninho nos olhos.
Pedra e caminho como no dizer daquele.

Eu sou dedos.
Riso-metade.
Totem de carne fácil.

Minto: dentro de um sexo-cofre bem guardado, nada existo.



® Rubens da Cunha


Poema feito a partir
da leitura incorreta
de uma frase no
blog de um dos meus
iguais na tragédia: Douglas

06 fevereiro 2006

C. Ronald

Livro: A Razão do Nada

deseje também a impaciência mesmo condenada
branca ou amarela ou nem isso
em todo o caso anime o mundo elegante
da loucura com a criança diferente
pondo em atividade os átomos
e os mistérios de tantas outras

o perfil do réptil é uma carreira de breve
estória a língua estala e o inseto
dispara a surpresa sem vê-lo
significa um ritmo de horizonte
na divisão das coisas quando o sonho passar
e não se mexer pela nudez das fadas
dentro das fontes.

02 fevereiro 2006

Quando Deus morreu era um dia azul. Inverno. Estávamos todos ao sol. Lagartos. De repente, o azul do céu começou sangrar, primeiro foi um filete de sangue escorrendo pela abóbada, até se perder no horizonte, depois mais e mais até todo o céu estar vermelho. Deus sangrou devagar, pois não choveu sangue, como era de se esperar, tudo o que vimos foi o líquido escorrendo, como se estivéssemos debaixo duma redoma e alguém jogasse tinta sobre ela. Alguns ouviram gemidos. Não foi comprovado. Outros juraram ter visto Deus fugindo para Saturno, com Jesus, Maria, e mais alguns santos e anjos, também não foi comprovado. Desde aquele dia não tivemos mais notícias de Deus, comprovando assim sua morte. Ficamos tristes por um tempo. Luto mesmo. Deus cuidava bem de nós. Agora, passados dois invernos, o céu até está azul novamente: o novo dono usou as nuvens para limpá-lo. Chama-se Lúcifer. Diz que matou Deus porque não teve escolha, e só retornou para o que era seu. Não nos fez mal. Nos finais de semana desenha fogueiras entre as nuvens. As crianças gostam.

© Rubens da Cunha