29 agosto 2005

Terremoto Diário

Mãos denunciam. Se pelo menos parassem de tremer. Não tão velha assim. O que lhe acaba são estas mãos. Foram bonitas, lisas. Agora tremem, tremem sem parar. Olha-se no espelho. Nariz rapina. Boca crespa. Olhos fundos: se visse em outra não iria gostar. Tantos anos se passaram que perdeu conta. Contou tempo alguma vez? Não. Jovem, encaminhava-se inteira sobre todos. Agora, treme. Senta-se na varanda. Sol lá fora. Crianças brincam. Chegam perto: porque tua mão treme? Não sabe resposta. Esconde nos bolsos. A vovó tá doente, por isso treme. Parece mão de bruxa. Ouve a sentença de uma das crianças. Ri por fora. Faz um movimento de garra com as mãos. Os meninos saem correndo, voltam a brincar. Por dentro: voz aguda de criança. Parece mão de bruxa, mão de bruxa, mão de bruxa. Dói muito. Chora. Mão de bruxa. Tenta segurar as mãos. Mão de bruxa. Com dificuldade entra na casa. Tremendo, limpa lágrimas, na verdade espalha lágrimas sobre o encavado da cara. Suja cara de sal. Chora mais do que pode conter. Mão de bruxa. Não tão velha assim. Encosta-se na parede. Toda a cozinha treme. Mão de bruxa. Azulejos descolam-se. O piso solta-se. O teto começa a ruir. Quadros caem. Armários tombam. Tudo treme. Mão de Bruxa. As paredes internas da casa sucumbem. Não pára de tremer. Todo o corpo estremece. Um coro de crianças grita dentro de suas orelhas: mão de bruxa, mão de bruxa. Telhas voam, caibros esboroam-se. Mundo treme. Ela quer parar, não consegue mais. A casa implode. Debaixo dos escombros continua tremendo. Não grita socorro. Não ouve sirenes, não se dá conta do desespero da família. Treme apenas. Horas passam. Deitada sob os entulhos da casa. Milagre! Gritam, milagre estar viva. Sai andando. Nada aconteceu. Como pode, meu Deus? Agasalham-na. Hospital, observação. Milagre. Sempre esta palavra espúria saindo entredentes dos conhecidos. A casa desmoronou, ninguém viu nada, ninguém sabe como foi isso. Ela viu. Ela sabe. Transferiu sua tremedeira para as paredes. Enfraqueceu a casa com sua fraqueza. Queria que o mundo sentisse o seu terremoto diário. Observa as mãos de bruxa: enfaixadas. Os curativos começam a tremer.

27 agosto 2005

Parede

A solidão inveja as paredes do quarto.

Queria tanto ser fixa, concreta, branca,
adornada de adjetivos.

Só consegue ser carne e alma.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Tony Oursler

Escritores catarinenses: Fernando José Karl

Ao Fernando eu devo uma gratidão: foi ele quem me tirou do rame-rame adolescente e romântico e me apresentou ao mundo devasso das palavras. Depois que fiz uma oficina com ele, o meu universo poético expandiu-se consideralvelmente. Trata-se de um dos poetas mais produtivos do estado. É um destes escritores com digitais evidentes. Um poema de Fernando só pode ser dele. Sua poética não deixa dúvidas: está sempre envolta em susto e delicadeza.

Fernando Jose Karl: Nasceu em 1961. Tem 12 livros publicados.

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MANHÃ DE SOL PARA FEDERICO

O sol, na manhã lavada, é a sombra de Deus.
Ficamos ali vendo as mulheres

mergulharem no oceano para esquecer,
enquanto nos teus olhos li que

a morte é a única sombra:
manhã com céu a incendeia.

Há no céu imensas curvas de cristal,
e na cama os esqualos, faltasse água,

morreriam à luz seca do meio-dia.
Por isto fomos ao oceano com baldes de alumínio

caçar águas.

® Fernando José Karl
in: Desenhos Mínimos de Rios
Secretaria do Estado da Cultura - PR - 1997

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TRAVESSEIRO DE PEDRA - OPUS 2

Vista de lado é pedra antiga
que não perde o perfume,
embora o vento fustigue as bordas duras onde adormeço.
De frente, o travesseiro de pedra

é retângulo sumério - polido - fascinado
pelas voltagens nuas da primavera.
Se o tenho sob a cabeça ventilada de árvores,
o travesseiro de pedra revela-se santo,

posto que não é só de pedra,
nem serve apenas de travesseiro, antes alivia,
com sua imagem, todo cansaço inútil.

Assim como está, travesseiro entre goiabeiras,
é tudo o que tenho nesta manhã de verão
em que a infância faz sombra em meus olhos.

® Fernando José Karl
in: Travesseiro de Pedra
FCC Edições. 2000

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MANHÃS, CAVALOS

Sou triste
não posso estar nos cavalos
quando chove

Eu também vi
no dorso dos cavalos
a chuva esquecer de si

® Fernando José Karl
in:
Brisa em Bizâncio
Travessa dos Editores - 2002


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O SOL


O atirador de facas mora na rua Vernanhein, 33. Casa tosca. Prato na pia. Chinelos atirados no canto e o ventilador incomoda as moscas.
À noite, sai para atirar facas em moças que depois leva para casa, cura com ervas e beijos nas chagas, e as ama no assoalho.
Quando preso, dirá que fazia aquilo por causa do sol.

® Fernando José Karl
In: Caderno de Mistérios
Editora Letradágua. 2001

25 agosto 2005

Dizer

O barulho do sapo acordou a palavra.

Coaxa-me na garganta seu ritmo anfíbio.

Antes que o sono senzale meus olhos,
transcrevo essa melodia de escuros
num pedaço de papel higiênico.

Amanhã, recupero o descartável.



® Rubens da Cunha
Ilustração: Victoria Tchetchet

23 agosto 2005

Enquanto espero

Enquanto BURABAS, o novo romance de Adolfo Boos Jr. não me chega as mãos, vou amaciando minha alma com seu livro de contos: "As Famílias".

Em breve, no Casa de Paragens, um perfil mais completo de um dos maiores escritores deste paí­s. Por enquanto, fiquem com um parágrafo do conto "A Noiva".

(O Blog Casa de Paragens adverte: ler Boos Jr. pode causar dependência)

"(...) Odiará: a cidade, a irmã, aqueles com quem nunca falou, os que ainda se lembram dela. Odiará, assim como odeia a casa, de uma maneira uniforme e silenciosa, crescente e sem rompantes, como se os longos anos ali vividos embotassem, além de qualquer vestí­gio de saudade, qualquer amena recordação, por mais descolorida que fosse, e soterrasse também a força que alimenta o próprio ódio, deixando-a, entretanto, latente dentro dela, igual a semente de uma erva daninha. Para ela e a irmã, a casa é um casulo de estragada cor-de-rosa, cheio de sombras e manchas de umidade, onde o sol custa a penetrar e, quando consegue vencer os limites das aberturas, detém-se logo no assoalho enegrecido, não alcançando os cantos empoeirados, onde dormem seus fantasmas. Por isso sabe: com sua carga de ódio um pouco maior, voltará. Caminhará a dura tragetória criada por seus pés esparramados, pelas trêmulas coxas molhadas de suor, pelas doloridas varizes, seguindo na grama seca a impressentida trilha. No meio de tanto ódio, um hiato - assim como a diminuta pausa de um pulmão, na luta para conseguir uma parcela maior de oxigênio; a súbita e enganosa parada de um coração, antes de retomar o compasso anterior - a repentina, arisca esperança de ouvir um chamado, a volta inutilmente retardada. (...)
Adolfo Boos Jr. As Famílias - FCC Edições - 1980

22 agosto 2005

A Busca


Precisava descobrir quem seria. Pensou garça, pato, corvo, aves todas, não, voar não lhe convinha, alto demais. Pensou vermes, lombrigas, minhocas, não, toscos demais, sem começo nem fim. Pensou árvores, carvalhos, tucaneiras, inhoçaras, jacarandás, não, fixas demais, verdes. Pensou pedras, diamantes, ametistas, metais, ouro, cobre, zinco, não, frios demais, duros, estranhos. Pensou carros, computadores, aviões, foguetes, não, frágeis demais, fáceis de estragar e morrer. Vasculhando até descobrir o que seria, ele pensou homem, sim, superior, intenso, consciência. Resolveu ser homem. Arrependeu-se no quarto dia. Tornou-se um mourão de cerca enterrado no brejo. Está feliz, apesar da umidade nos pés.

© Rubens da Cunha
Ilustração: Jackson Pollock

Memória

Senhora de pernas débeis,
a memória pouco suporta
caminhar nos estradões
inconfessáveis do sentir.

Propícia a tropeços,
fraturas e miragens,
é preciso dessendentá-la
antes que seque.

Antes mesmo que os ossos peçam,
é preciso descansá-la
à sombra do desprezo.

® Rubens da Cunha

18 agosto 2005

Des-Rio



Humano: desvio de sonho. Esquivo Deus de areia que não se arranca a cortes, que não se descasca a dentes. O homem condoeu-se de ser rútilo por dentro, apenas para ser esta lua imantada de temor por fora. Sangrar-se des-rio. Destinar-se estátua ao depois da morte é o merecimento válido dos feitos em descrença. O antes, na vida, fica por conta do sono e da sina de acordar auroras.
do livro inédito "Casa de Paragens".
® Rubens da Cunha
Ilustração de Paul Klee.
"Um homem com os olhos fechados é um destroço de si mesmo"
Milan Kundera in: A Insustentável Leveza do Ser

As Manhãs de Quinta

Nos confins de uma quinta-feira, gritam lápides na parte interna da testa.
Lá fora, a vida persegue os cães. Nada que desaconteça ou desaponte o Verbo.
Aqui, neste quarto minguante, durmo mais um pouco.

As manhãs , com suas vigas de isopor, não agüentam o peso do delírio.

® Rubens da Cunha

17 agosto 2005

Autores Catarinenses - Ernani Rosas



O Blog Casa de Paragens apresentará alguns autores catarinenses.
Por uma série de fatores, a literatura feita em Santa Catarina não alcança a divulgação adequada. Este blog fará a sua parte, amparando-se muito naquela historinha de auto-ajuda do homem na beira da praia devolvendo as estrelas-do-mar para o mar.
Começamos com Ernani Rosas.
As informações biográficas e os poemas foram retirados de "História do Gosto e Outros Poemas" Editora da UFSC. O Prefácio e o estudo sobre os poemas contidos no livro são de Ana Brancher.

"Ernani Rosas nasceu na então Desterro, em 31/03/1886. Residiu grande parte de sua vida no Rio de Janeiro. Viveu 69 anos. Publicou em vida: Certa Lenda Numa Tarde - Paráfrasis de Narciso; Poemas do ópio; Silêncios. (...)
Gago, homessexual, pobre, tratando de viver 'como poeta' (...) apreciando sobremaneira o álcool e provavelmente o ópio, afastado do convívio com os 'poetas maiores' de sua época, é de se supor as dificuldades encontradas por Ernani para publicar seus poemas"
Tanto que os poemas contidos na "História do Gosto" ficaram guardados em uma caixa na Academia Catarinense de Letras por mais de 40 anos, sendo resgatados para a análise e publicação do livro só em 1997.

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"Chegamos a gostar de coisas repelentes"
Charles Baudelaire

Num antro de magia e rúbido mistério,
onde a serpe, a coruja, o sapo tem poesia...
seja negra ou real, a lúgrube magia
em prol da nossa fé em seu áureo hemisfério...

A víbora e o morcego têm duplo poderio,
a áspide produz filtros cruéis p'rá morte:
e na ronda avernal desliza um negro rio...
de líticas visões n'uma obscura coorte!...

Gostando do que é velho e rude, amei-Te um dia...
oh! gasta barregã-ruiva, que ironia
emoldura de Luz na sombra luxuriante!

Vejo aquilo, que o olhar não vê e não namora!
vejo, não a mulher - o anjo, que lá mora....
a nevoenta visão da aurora inquietante ?!...

® Ernani Rosas

II

Dentro de Mim, um Outro urde negro destino,
urde a lenda da raça em torre de ilusão.
E é rival meu no sonho esse monstro divino,
fez-nos Deus duplo ser, tendo um só coração...

São dois gêmeos irmãos, que se beijam e se odeiam;
Filhos da mesma Sina e do mesmo Infortúnio
e erram sob um luar num distante Interlúnio
de saudades e veemência - ardores que a Lua anseiam...

Sou um misto de Luz e Deus... deliro arcano!
mistério e luar perdidos a seguir as Galeras
que esculpem em sonho o Além desfeito no oceano...

O ardor da carne anseia um outro ser, enfim!
sou o fluxo-refluxo eterno das quimeras...
que chora esse outro alguém, que já viveu por Mim.

® Ernani Rosas

12 agosto 2005

O início da viagem

Coloco a "Casa de Paragens" na Rede.
Começa a viagem.
Que o Verbo dos Inícios nos proteja.

Rubens