31 outubro 2005


escondo os poros nos porões
ou em canto qualquer
que não se veja

o meu destino
é disfarçar
as escondiduras
da casa e do corpo

faz tempo que não
abro as janelas e as pernas

faz tempo que não enxergo




® Rubens da Cunha
Ilustração: José Roberto Aguilar


28 outubro 2005

Três delírios sobre reencarnação

1
Estou velho. Dentro da memória vejo uns ranchos de chão batido, cavalos no pasto, invernos. Tudo faz a saudade tremer. Agora, próximo da morte, com os ossos, os músculos, os olhos gastos, percebo que fui completo em tempo de menos. De certeza: a morte bem próxima. De saudade: todas as lembranças das coisas que deixei de ser neste e noutros tempos. Tomara que voltem em breve. Tenho fé num retorno mais corajoso.

2
Vasculhos túmulos. Não para roubar ossos, ou as letras de metal das lápides, ou o mármore das catacumbas. Vasculho túmulos para ver se encontro a saudade das vidas antigas: aquelas que vivi e a memória física não trouxe comigo. Não sei porque fui castigada com tal absurdo: o de não lembrar a mulher, o rei, o serviçal, o soldado, a poeta estuprada que fui nos dias de antes do meu nascimento. Vasculho túmulos, porque ouvi certa vez que nos cemitérios é possível encontrar os portais para o passado. Julgaram-me louca, absurda, herege. Devolvi todos os xingamentos na mesma ordem. Tudo o que interessa é minha procura: um dia acho o portal e resgato tudo o que fui. Um dia acabo o castigo. Se eu morrer antes, tudo bem, continuo lá no futuro a minha vasculhação.

3
Tenho seis meses de idade. Não falo ainda a língua destes que me rodeiam. Não sei bem porque me fervilham estas memórias. Percebi que conforme cresço, mais me distancio da vida anterior. Ouvi a que chamam de mãe explicar para o que chamam de irmão o que era saudade. Agora sei o que sinto. Saudade. Bonito isso, quando chorei pela primeira vez eu tinha muitas lembranças. Seis meses depois, sentado neste berço, tudo o que tenho é saudade. Olho para aquele que chamam de pai e tenho a certeza que logo serei esquecimento. É o preço que se paga pela vida.
Rubens da Cunha

24 outubro 2005

O desejo é um deus costurando a pele humana


Dia após dia,
o desejo poetiza,
escandaliza,
culpa os poros.

O desejo não pode parar.

Entre o verme e o vírus,
entre o cerne e a música,
o desejo contabiliza suas vítimas.

Homem. Mulher.



Homens não param,
avançam,
endurecem,
dilatam pupilas,
rasgam tudo com seus troncos desejos.

Animais, ânimas,
almas colhedoras de paixão,
homens avessam-se,
retorcem-se nos quadris,
nos quadros,
nos Goyas das fêmeas
e de outros machos,
que o desejo não enxerga o caminho.

Anda apenas.

O desejo no homem requer furor,
faca,
focinho de cavalo e rato.

O desejo no homem não é difícil,
não é Sartre ou Heidegger.
É Napoleão, Alexandre, César.
Nada de Pilatos, nada de fraquezas,
muros,
o desejo no homem é veneno,
vento,
mais que janela,
porta, portal de saída branca,
múltiplo, viscoso, rápido, réptil.

O desejo nos homens carcome por dentro e por baixo.

Não se eleva, não sublima, não discute.
Quer, requer.
Expele, espora.
Galo, ginete, fogo.

O desejo no homem consome,
desgasta, desgosta,
foge para se esconder entre pernas inéditas.

O desejo no homem macula,
pagina,
confere aspereza e prazer.
Não mede, não acaba, não sossega.

O desejo no homem desenha suicídios e nascimentos.




Mulheres são calabouços,
poços artesianos de desejo.

Recôndito, ermo, distância.
Sempre uma camada abaixo,
sempre-viva, Medusa, Medéia.

O desejo na mulher desopila, fundamenta.

Concreto armado em nuvem.

O desejo na mulher é lento,
quente, ferve vermelhos,
martela a carne até que o diamante se exale num espasmo.

O desejo na mulher se iguala em ventre,
em vértice, em sombra,
quando feito por outra mulher,
mas descasca-se em bétula,
dália, lápide, quando visitado por homem.

O desejo na mulher vasculha,
vasilha, varre facilidades.

Ulisses em Joyce.
Cantos em Pound.
Farol em Virginia,
o desejo na mulher não tem superfície.

Palavra. Letra. Onomatopéia.
Inversão administrada por noites e violoncelos.

Sempre coberto, sempre interno,
o desejo na mulher liberta-se pouco
porque sabe que seu vôo é um assalto violento,
um susto cardíaco.

Uma catástrofe de alegrias.

O desejo na mulher é semeado em contrários.

Peca e confessa.
Resguarda-se e trai.
Concede-se e vende-se.
Esquina e curva.

O desejo curva-se a si mesmo.
Corta-se no caos.
Chove enquanto estia-se nas planícies do ventre.

Esteira profana, o desejo na mulher deita-se, sem dormir jamais.


® Rubens da Cunha
Ilustração:
Pilar Hinojosa

Filmes


O Coronel e o Lobisomem
Vocês sabem aquelas montagens que se faz com fotografias, usando as melhores partes de cada pessoa? As sobrancelhas de Malu Mader, os olhos de Ana Paula Arósio, a boca de Julia Roberts e o corpo de Camila Pitanga que jamais resultaram num mulherão e sim numa monstrenga. O mesmo vale se a montagem for feita com atributos masculinos. Pois O Coronel e o Lobisomem resultou igual a estas foto-montagens. A melhor parte dos envolvidos no filme não resultou numa obra-prima, e sim num filme arrastado, sem perspectiva. No roteiro: Guel Arraes, João Falcão e Jorge Furtado. Individualmente, os 3 são donos de um estilo já bastante conhecido na televisão, teatro e cinema, e que é normalmente excelente. Juntos, não souberam o que fazer com o texto José Candido Carvalho, (não conheço o texto deste autor, mas as falas do filme me remeteram a Guimarães Rosa) diminuiram o humor, arrastaram-se por quase duas horas num vai-e-vem inócuo. No elenco principal: Diogo Vilela, Selton Mello e Ana Paulo Arósio. Diogo fazendo um coronel histriônico, fala uns 50 decibéis acima dos outros personagens, tá certo que era uma das características do personagem, mas cansa muito. Ana Paula, linda, fez uma heroína meio falsa no gestual, no jeito de falar. Mas a grande decepção foi Selton Mello como o lobisomem. O que fizeram com ele? Espero que tenha sido apenas um tropeço e ele volte a ser o que foi em Lavoura Arcaica e Auto Da Compadecida. Por que neste filme tudo nele parece medíocre.
O estreante em cinema Maurício Farias não soube conduzir um roteiro tão sem graça, não soube aproveitar os parcos efeitos especiais, podem ser de última geração coisa e tal, mas em uma cena com uma onça soou absolutamente fake. Falta muito pros brasucas chegarem lá, infelizmente. Mas o pior na direção de Maurício Farias foi fazer seu elenco interpretar um em cada direção. Não há unidade nenhuma. Enfim, um desperdício de talento individual e dinheiro. Para esquecer.

Os Irmãos Grimm

Terry Gyllian tem uma estética própria, muito dentro do "ame ou odeie". Meio termo não funciona muito com ele. Over, barroco, excessivo, é o tipo de cineasta que gosta de colocar tudo dentro da imagem. Com "Os Irmãos Grimm" não é diferente. Meio que reinventado os contos de fada, meio que respeitando-os, Gyllian joga os irmãos falsários numa floresta encantada de verdade. Reis, rainhas malvadas, lobos encantados, bruxas, tudo junto ao mesmo tempo agora como é do gosto do cineasta. O que se vê são alguns sustos, uma ou outra cena de humor, pouquísismo romance e um irônico final feliz. Não muda a história do cinema, (acho que Terry Gyllian sem o Monty Pyton nunca vai conseguir isso) mas não ofendeu a minha inteligência mediana.

22 outubro 2005

Ainda


jejum
o dia já morreu a metade
a tarde nasce desconhecida

a vida não encontra

alguém pôs um cadeado
na saída de emergência

tem certas coisas que só o fogo consegue

® Rubens da Cunha
Ilustração: Anne Kmieck

21 outubro 2005

A língua: que falo!


“O que quer o que pode esta língua?”
Caetano Veloso

Quer pólvora, ponte, quimera. Mera ponta da Europa. Esta língua pode: abrasileirar-se, africanizar-se, aziar-se: Macau é aqui na esquina. Angola do outro lado da rua, aonde nois fumo, nois vai, nois vorta no vórtice da palavra, no vértice latino dos analfabetos:

— Seu nome? por favor:
— Aurélio, mas não sei ler nem escrever, meu senhor. Falar eu sei. Olha minha língua: diz tudo que preciso saber.
— Ok my friend? o importante é o speak up!

Esta língua quer viver na boca diária dos seus falantes. Quer ser mastigada com plurais e conjugações, temperada com orações subordinadas ao tempo. Esta língua pode ser/estar aonde nenhuma outra vai. Vaca de presépio. Arcaica no “vós temeis, vos sabeis, vós amais”. Vós não falais nem escreveis mais assim. Agora a voz é outra, menor. rápida e na tela do computador surge uma escrita mutante: “d ond vc tc?”, “daora vc ker tc aki?” “uia...eu tb toko guitarra”.
Falo e digo o que a língua lambe, mais que na escrita, é no vento que ela poetiza-se, puta de esquina, freira de claustro, mulher amarga e doce, barroca lavadeira esfregando-se mundo afora. A língua agüenta. O que não agüenta é o ouvido.

Let´s go my dear! Vamos ver como é bonita a linguagem dos índios afrotugueses que habitam aquele país ali embaixo.
Rubens da Cunha

20 outubro 2005

Artérias

O crime de comerciar
incoerências angula
suas lâminas no pescoço

O corte da Jugular
não resiste ao espetáculo

Todos verão com quantas
fragilidades se constróem as artérias

® Rubens da Cunha
Do livro inédito "Casa de Paragens"

18 outubro 2005

O Rancor - última das partes


Dizer aos tornozelos as mazelas
do rancor, mas antes que a boca chegue
aos pés para depositar segredos,

pesar a cada mão os infortúnios
sobrantes do vício. Curvar a espinha
com cuidados de culpado. Talvez

ocorram acidentes no decurso
insidioso de humilhar-se ao chão.
Talvez os entraves do orgulho corram

por entre as vértebras do rancoroso,
que feito de matéria pouca, pouco
pode suster os motes da renúncia.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Jorge Salort

17 outubro 2005

O Andarilho

Está invadido por insônia e madrugada. Anda em substantivos abstratos demais: saudade, desesperança, um certo amor incerto, inquietude. Quer mesmo um pouco de matéria, um outro tanto de palavras tocáveis: dorso, árvore, joelhos, pássaro, pele, mãos imensuráveis desafogando-o. Sai de casa. Inverso. Reversivo, vai às ruas quando a maioria as deserta. Perscruta a cidade na busca de algo que lhe pareça concreto. Está tão cego quanto a noite que o cerca. Não há lua visível. Não há escolha nas proximidades. Apenas as calçadas em abandono, uns transeuntes também abandonados. Pensa um pouco na violência que se derrama nas manchetes dos jornais. Sozinho aqui, alvo fácil. Dispensa logo o medo: está na cidade das câmaras. Nada a temer. Alguém o vê agora. Se não está seguro, está sendo visto, todo vago, todo permissivo com a tristeza. Na solidão das esquinas algumas mulheres também insones comprometem-se aos desfazeres do amor. Tempo espúrio esta noite. Sem máscara, sem sorriso. Só breu no lugar do sangue. A alma exilou-se em algum passado mais ameno, mais manhã. Troca olhares, lembra-se que da ausência de dinheiro. Nestas noites, em que o amor é troca de moedas, limita-se ao olhar ainda gratuito, ainda receptáculo de alguma inocência. Logo, a voz aguda da mulher destrói o pouco de inocência: “dez real o boquete, vai querê?”. Aquilo o atemoriza, cava um túmulo abaixo de seus pés: “dez real o boquete”, é como se lhe jogassem terra sobre o vidro do caixão. Sai correndo daquele mundo. Percebe-se vivo, ou morto de outra espécie, mas não daquele mundo. Foge. É seu destino, a fuga. Volta para casa, o sol quase bate na janela. A boca seca, travosa, bebe um pouco de água. Talvez, durma. Invertido sempre. Não encontrou seus substantivos concretos. Ainda todo abstrato: infeliz, vazio, ausente. Dorme. O sol amarela a cama e vermelha seu rosto.

14 outubro 2005

O Rancor - 3ª Parte


O rancoroso atravessa as pessoas
sem olhar para os lados. Desconhece
as pernas aleijadas de obsessão.

Tampouco, reconhece nas costelas
qualquer resquício de atropelamento.
O rancoroso pouco se lamenta.

Pouco se mostra hábil ao descanso,
pois caminha demasiado no encalço
daquele que o quis vasilhame de ofensas.

Pouco pensa em desistir-se aos escolhos
da indulgência. O rancoroso escolheu
honrar-se à paciência vesga dos trágicos.
® Rubens da Cunha
Ilustração: Jorge Salort

Bíblico

Ostentar o corpo de ouro sobre patas de argila. Bíblico testamento. Antigo de impureza. Não perder a aparência. Se descobrirem os pés frágeis, respeitarão os restos áureos. É assim que se figuram os fortes. Nunca devaneios ou alucinações fomentaram vitórias. No máximo, argumentam uma fala infantil diante da morte.

11 outubro 2005

Filmes

Lavoura Arcaica
De: Luiz Fernando Carvalho
2001

Finalmente em dvd, um dos mais ousados projetos do cinema brasileiro. Luiz Fernando Carvalho é um esteta exigente, criou um filme que se afasta do cinema e ampara-se completamente no teatro e na literatura. O livro de Raduan Nassar é um texto complexo, quase barroco, profundamente poético na sua construção. Todas as falas do filme são as falas do livro, além de grandes trechos narrados em off. Ou seja, se você gosta de realidade e coloquialidade, passe longe, porque o ódio será certo, agora se você, como eu, gosta duma linguagem exasperada, um jorro de culpas e desejo, um erotismo reprimido pela família, sistema, mundo, Deus, então este é o filme e este é o livro. Recomendo os dois ao mesmo tempo, de preferência.
Selton Mello é espetacular, prestem atençao nos pés do ator. Juliana Cunha faz as cenas mais comoventes e silenciosas. De partir o coração. Raul Cortez é grandioso na sua rigidez como o pai cheio de moral e parábolas. O visual acompanha o texto, apesar de determinados momentos não conseguir fugir da redundância: imagem mostra o que o texto está falando. De resto, quase três horas de grandes interpretações, de alta literatura e de um cinema-teatro corajoso, porque não optou por fórmulas fáceis. Para assistir gritando de dor e agonia diante da beleza trágica do desejo.
Cena máxima: André tentando convencer Ana, a irmã, viver com ele, não conseguindo, exaspera-se sobre o altar da capela. O gesto de segurar o sexo e a fala agressiva causam alguns tremores internos.

Lolita
Stanley Kubrikc
1962

O filme de Kubric, apesar de toda a força, ficou datado. Sua igenuidade não cabe mais no nosso tempo amoral. É praticamente impossível vê-lo com olhos de agora, tem que se fazer a transposição para os anos 50/60, coisa que não acontece com filmes como "O Pecado de Todos Nós" ou "A Malvada". Lolita e Humbert não se tocam de maneira sensual, ficando tudo nas entrelinhas. Eu gosto de entrelinhas, mas o livro de Nabokov era bem mais explícito do que pode ser Kubric na época em que filmou este Lolita. Sue Lyon está adulta demais. A personagem no livro tinha 12 anos, a atriz, 16 com cara de 20. O desejo sem barreiras proposto por Nabokov não se fez presente no filme de Kubrick pois o cinema precisa sempre de mais coragem do que a literatura para tratar de temas polêmicos. Eu seria enforcado ao afirmar que o Lolita de Adrian Lyne é melhor que este de Kubrick? Aqui, uma análise psicológica bem interessande dos personagens.

10 outubro 2005

O Rancor - 2ª Parte


Ter aos dentes o riso terminado
ao meio. O siso arrancado por inépcia.
Hemorragia da raiz ao rancor.

Extrair do maxilar a concreção
do afeto: gengiva infecta. Vazio
de boca que esfuge de si qualquer

resto de beijo: epicentro de busca.
Ressentir-se molar ao mastigar
a solidão incisiva do abandono.

No limiar do descaso, quase à morte,
permitir que se espalhem as devidas
negruras da cárie por sobre a cara.
® Rubens da Cunha
Ilustração: Jorge Salort

05 outubro 2005

O Rancor - 1ª Parte


O rancor é assim: próximo do estômago,
aqui, onde o alimento já depois
molda-se nojo: esgoto que levamos

dentro. Torpor de morto que jogado
à indigência mantém-se preso ao verbo
instável da memória: luto fétido.

O rancor é assim: fúria corrosiva
incendiando de câncer as mais vísceras
que somos, as mais ínfimas tarefas

do costume: cardápio de cegueiras
fechado à fome da insônia. O rancor
é assim: doença que nos entreva ao nada.
® Rubens da Cunha
Ilustração: Jorge Salort

03 outubro 2005

Desentocados

Esquecer: areia movendo-se.
Atrás das dunas,
não existe o mar, o azul,
ou qualquer resquício de infinito.

Apenas a areia construindo castelos.
Miragens para os desavisados.
Não existem portos, cais, navios.

Apenas areia erguendo ruínas,
desterrando esqueletos.

Não existe vida atrás das dunas.
Apenas desentocados caranguejos.

® Rubens da Cunha

01 outubro 2005

Autores Catarinenses - Olsen Jr.



Autor: Olsen Jr.
É Catarinense, nascido em Chapecó. Jornalista profissional e formado em Direito.
Livros : Os Equecidos do Brasil, Confissões de um Cínico, Estranhos no Paraíso


Aqui, uma entrevista com Olsen Jr, um dos mais atuantes escritores de SC



Do livro: Desterro, SC
Editora: Insular
Trecho do conto: A Confissão
(a escolha do texto foi por identificação imediata)

"(...) No meu caso, sou escritor, menos porque escreva, mas porque no "meu projeto" está a resolução de reinterpretar o mundo através da literatura. O primeiro obstáculo a ser enfrentado - nesse caso - é superar a vergonha de, ao ser interpelado sobre: "qual é a sua profissão?" - afirmar com convicção: "sou escritor". Porque neste País subdesenvolvido, ser jogador de futebol é ter uma profissão, mas ser escritor é o mesmo que nada. Você está rindo? Eles também riram quando falei naquele dia lá na Universidade. Mas vejam, continuei, outro dia alguém me perguntou se eu estava trabalhando, eu disse que sim. Então, diante da inevitável questão "o que é que você está fazendo? - Respondi que estava concluindo um livro de contos. Aí, precisava ver os olhos do meu interlocutor, que sem perder a compostura, afirmou: "mas trabalhar mesmo você não trabalha, né?. Bem, diante dos dois fatos: primeiro, a concepção pré-histórica do "trabalho" e segundo, que a criação literária não é um "trabalho" fica difícil e é inútil usar qualquer técnica persuasiva para desmontar este equívoco, mesmo porque, acredito, o verdadeiro escritor não tem que provar nada, precisa apenas ter uma questão com a vida. O esforço para resolvê-la está no resultado de seu trabalho. Aqueles que escrevem pensando no leitor, são os redatores de publicidade. Agora, a confusão se estabelece com alguns cretinos tentando dar um sentido para suas existências e que ao invés de criar cavalos ou colecionar selos, resolvem escrever. Além de acabar com o profissionalismo, tornam esta arte como uma atividade secundária. Mas a verdadeira literatura, idepende do leitor, e se a "questão com a vida" de seu autor for legítima, permanecerá, como um Poe, um Kafka, Hemingway, Proust, enfim, tudo isso independente de Deus, porque se Ele "não existe (lembrei-me na hora de Dostoievski) então tudo é possivel" ou "supondo que Ele exista (repeti Sartre) o que é que muda?" Em suma, amigos, somos os donos do nosso destino e como já disse para um jornalista, concluindo agora, a nossa conversa, não é necessário pensar como eu, basta pensar comigo.(...)"