30 setembro 2005

Os Fazimentos do Amor



Antes que se faça o amor,
o corpo se condiz no vazio.
Não tanto o corpo, mais o tato
em fúria, em vício de espera.

O crime inusitado de corroer-se
às margens da vontade:
cristo ressurrecto no ventre.

O amor antes de feito
não conduz azuis celestes.
Quer rubrar-se totem ávido.
Quer enegrecer clarividências.

Curta frieza de vento,
o amor no fazer-se furta febres,
desvia pulsos e pensamento.
Se não estilhaça a carne,
pelo menos des-memória
o mármore de cada poro.

Ateu de invisíveis tropos,
o amor desfaz-se em vértebra.
Desfeito, cambaleia tênue
por sobre o quase infarto
do sânscrito silêncio.

Vadio de destroços,
artéria-se em migalhas.
Ao quedar-se humano,
O amor, deus-feito, morre
.
® Rubens da Cunha
Ilustração: Wassily Kandinsky

27 setembro 2005

Sob o fantasma de Álvaro de Campos

Sou um desenho feito de ferrugem e carvão.
Não me interessam as paixões, os desmazelos.

Estou aquém do mundo.

Marginado.
Não sou entre os outros, um melhor.
Sou entre os outros, um alheio.

Sentencio-me ao desdém.
Cumpro a pena sorrindo.

® Rubens da Cunha

26 setembro 2005

Cotidiano

São anódinos os minutos que se vê diante do espelho. Um pouco de manhã, antes de entrar no banho. Um pouco depois de sair do banho. Nunca se olha nos olhos, sabe que está lá, mas é refém do fingimento. Depois do almoço, também se vê no espelho, de relance. Não pode se perturbar. De noite, antes do sono, arrisca um olhar mais demorado. Não se reconhece.
Vai para cama feliz.
Escapou mais uma vez.
® Rubens da Cunha

22 setembro 2005

Danações

Dedicado a Hilda Hilst, pela coragem que me dá
e a Fernanda, que me pediu surpresas.

Danação 1 - O Perdão


Noite. A faca encostada na garganta. A Lâmina. Um filete de sangue. “Fala, anda, fala, não desvia o olhar, não chora, anda, fala”. Eram dois corpos suados, despidos, macerados em ódio e medo. De manhã, Caio viu Joana aos beijos com um outro, na rua, “eu vi, eu vi você lá com o Paulo, anda, fala, sua puta, tu deu pra ele?” Joana entre a parede e o corpo todo pesado de Caio. Com o braço esquerdo ele a segurava no tronco, com a mão direita encostava mais fundo a faca na jugular da mulher, tudo que queria ouvir era um sim, eu te traí, sim ele é melhor, sim tu é um bosta, “O que você tá dizendo? Eu não fiz nada, do que você tá falando? De onde tu tirou isso, tá me machucando, me solta seu desgraçado, endoidou?” Caio chora, não consegue palavras que traduzam o que sentiu, depois tudo o que vem é o ódio. “Vaca, vou te dar o troco, vou de matar, puta, vadia, quem tu pensa que é? Me cornear assim no meio da rua, de manhã?” Joana tenta se soltar, argumenta: “por que tu não veio na hora falar comigo, esperou até agora? É por que tu não me viu, tá delirando, bebeu de novo seu viado? Qualé? Me solta seu puto, é homem só com a faca na mão?” Joana atordoa-se, o que diz? Este é o homem que talvez ela ame, por que beijou Paulo na rua, quase em casa? Paulo chegou, agarrou, vem cá gostosa, tanto tempo que Caio não faz, não pega mais forte, tanto tempo, não resistiu, sempre olhou pro Paulo com uma certa vontade, não resistiu, agora Caio aqui, chorando, com a faca encostada na garganta, o que vai fazer? Não devia tê-lo agredido: “Desculpa amor, é que tô nervosa, não sei do que você tá falando, me solta, vai?” O pior é que eu gosto desta cadela, mas o Paulo, porra, meu amigo, pegando minha mulher na rua? Será que era ela, vou apertar mais um pouco esta puta, caralho, eu amo esta puta, por que ela tá fodendo comigo deste jeito? Me traindo, se amassando com outro na rua, quase em frente a minha casa: “anda, eu te solto, mas tu confessa, por que tu tava com ele? Eu tenho que saber, eu não posso ficar contigo na dúvida”. Joana resiste. Caio insiste. Noite. A faca ainda na garganta, a violência suando os corpos, Joana mexe com o ventre, encosta-se mais em Caio. O olhar súplico, “me perdoa amor, não faço mais, foi um deslize, vem cá que Joana vai te tratar bem, vem cá lamber o corte que tu fez no meu pescoço”. Caio treme, o troco, o troco tem que dar o troco na vaca, o cheiro úmido, muito bom, vai perdoar, ama, fazer o quê? A faca no chão. Caio lambendo o pescoço de Joana. As palavras calam. Joana goza pensando em Paulo.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Armand Lluent

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Danação 2 - Decidir



Será que agora eu posso? Muito tempo sem olhar. Pode acontecer cegueira. Desacostumado em tempo demais. Não sei. Medo tenho destes claros. Pouco lembro dos ais machos que me endureciam. Tempo tanto sem o toque na carne de outro. Agora isso: um acontecido do nada. Chega. Abre-se em tudo. Diz:

vai taí aproveita não desperdiça to dando anda logo enfia teus duros to pedindo não deixa passar não sempre acontece tu és feio tu és nada mas eu gosto anda come logo pouca paciência desejo em mim é limite dia todo não tenho vai descarrega teus brancos no meu buraco aduba-me vai logo

Será que agora eu posso? Começo uns dedos no quente dele. Bom. Faz tempo que não chego perto assim. O de Cima proibiu. Disse sujos pra mim. Disse:

não é direito gostar do igual. eu fiz diferente tem que apreciar o diferente. igual é proibido. não pode chegar perto do igual. castigo grande merecido vem ligeiro. igual causa dor ferida culpa. não pode chegar perto. não pode chegar no feliz com um igual.

Será que agora eu posso? O de Cima foi ameaça tempo todo. Mas natureza de cobra Ele tem. Põe ao contato dos olhos o que posso não ver. Agora a língua nos inferiores. Igual bom. Igual pronto. Quer dentro. Pede mais. Eu sei que O de Cima olha. Castigo ligeiro. Prazer ligeiro. O outro pronto. Saliva. Dedos. Ais como nunca antes. Esse bom. Agora eu posso. Agora O de Cima castiga. Perdi o medo. Culpa sempre. Pele. Não sai. Os meus baixos dentro dos baixos do outro. Agora eu posso. Agora foi. Carne fraca. A minha em frangalhos. O outro veste-se. Diz:

viu não tão difícil tu és bom tem é que perder o medo.

O de Cima diz:

Eu vi. Tu te misturando com esse aí. Eu vi. Não podia. Sujo. Lixo. O que te espera é impensado em palavra. Prepare-se.

Viro as costas. O de Cima pode muito mas não pode com um que já perdeu tudo. Ele me perdeu. Sou todo carne frágil. Descubro o quanto bom é a morte próxima e dentro de outro.
® Rubens da Cunha

Ilustração: Armand Lluent

20 setembro 2005

Filmes

Dogville
de: Lars Von Trier

Mais um filme do maior manipulador de emoções do cinema atual, Mr. Lars Von Trier. Resolvi rever para ter uma percepção melhor. Um dos mentores do Dogma, movimento dinarmaquês que pretendia revolucionar o cinema, mas se mostrou mais uma jogada de marketing, Von Trier criou um espetáculo de 3 horas distanciado dos elementos naturais do cinema e extremamente próximo do teatro: cenário único, sem paredes, mímica, atuações imponentes, desenhos no chão para identificar ruas, casas, e até o cachorro, importante personagem na trama. Também houve uma proximidade, esta a meu ver mais perigosa, com a literatura, colocando um narrador em off e em terceira pessoa, emitindo as opiniões políticas e filosóficas de Von Trier. Como em Dançando no Escuro, Von Trier nos propõe: "aceite-me como seu guia, vire um fantoche nas minhas mãos, que no final do filme você estará chorando muito, mas com a sensação de ser uma pessoa inteligente e sensível, pois eu sou inteligente e sensível". Quem embarca, adora. Quem não embarca fica com aquela cara de que está vendo uma emoção fabricada. Em Dançando no Escuro não embarquei na proposta do diretor. Em Dogville, lá estava eu, duas vezes, chorando e torcendo pela heroína. Uma gigante e corajosa Nicole Kidman. Para certas mulheres a separação só faz bem. Nicole é o exemplo máximo disso. Nenhuma outra estrela hollywoodiana enfrentaria o que esta atriz enfrentou em Dogville. Enfim, o filme como peça política, tenho cá minhas dúvidas, mas como cinema apresenta umas idéias muito criativas. Cena maior: o estupro sem paredes. De arrebentar o coração.



Procura-se um amor que goste de cachorros.
De: Gary David Goldberg.

Sim, eu sou um viciado. Na província o cinema é o que todos nós, moradores, sabemos. Mas eu não agüento sem ir na sala escura. Quando vi, lá estava eu assistindo Procura-se um amor que goste de cachorros. Uma comédia romântica que desfila as agruras de uma trintona descasada, na busca de um amor pela internet. O único elemento interssante do filme é o elenco: os sérios e talentosos Diane Lane, John Cusack, fazem o casal de pombos apaixonados, a sempre clássica Stockard Channing fazendo talvez a mais digna personagem do filme, pois ela foi muito próximo do ridículo, mas manteve a humanidade.
De resto é aquilo de todas as comédias românticas americanas: casalzinho se conhece, se apaixona, briga, separa, volta e é feliz para sempre.
Os atores conseguiram pagar o condomínio e eu resolvi minha crise de abstinência com mais um pouco de droga.


O Iluminado
de: Stanley Kubrick
Certa vez vi O Iluminado numa madrugada na Globo, ou seja, eu nunca vi O Iluminado. Vi na Cidadela Cultural Antarctica. Apesar de estar atrás de mim uma garota, daquela que o colunista do Globo, João Ximenes Braga chama de cinéfilo cão-guia, o tipo que vai dizendo, "agora ela abre a porta", "agora ela sobe a escada", (no blog do Ximenes tem mais uns tipos destes chatos, se bem que a garota era mais uma cinéfila-juíza, condenava insistentemente a atitude dos personagens). Mas deixemos para lá e vamos ao filme. Um Kubrick em alta forma. Apresenta sequências memoráveis, centra sua câmera nos atores, no portentoso hotel que serviu de locação, um espaço gigante que fica vazio no inverno, conta com um Jack Nicholson inspirado e uma pseudo-frágil Shelley Duvall, o garoto não é nenhum Haley Joel Osment, mas segura as pontas.
Muita técnica kubrickiana, sustos bem colocados, construção intermitente do clima. Nos tempos de sangue, sangue e mais sangue para dar sustos, as irmãs fantasmas do filme já podem não assustar mais, mas as sobrancelhas erguidas de Nicholson ainda causam uns arrepios na espinha.
® Rubens da Cunha

19 setembro 2005

Cama


Cama eu sou. Ele vem, desarruma, dorme em mim. Sonha seus itinerários. Depois campeia mundo à fora. Aqui eu, despida destes brancos arredores que o amor traz: esperança, cafés da manhã, repetições da noite anterior. Nada disso. Não sou fêmea com sorte para as alturas. Sou cama. Puramente. Quatro pés, estrado, colchão macio para acostar as partes dele e pronto. Mais não posso. Todo o resto é ilusão, é clichê nos livros baratos. A realidade é esta: eu móvel de carne, osso, um pouco de pele e lágrima. Levanto, arrumo o quarto e me arrumo. Tenho a manhã e a tarde pra isso. Ficar pronta, asseada, passar meus lençóis para que à noite ele venha deitar-se sobre mim, cobrir-me, gozar-me inteira. É a vida: me fez cama e meu homem hóspede noturno. Se às vezes choro é porque queria mais: umas horas depois do almoço, umas noites antecipadas, que me pegasse desprevenida. Egoísta eu sei. Tenho tanto. Cama eu sou, porque querer ser pia, sofá, mesa, demais móveis da sala? Sou mulher aqui nestes metros quadrados, nestes confins. Meu amor chega logo. Vou esquentar o seu lugar.
® Rubens da Cunha

Pausa de poesia

Está na rede o blog Pausa de Poesia de Ramone Abreu Amado, uma das mais instigantes escritoras destas paragens catarinas.
Apareçam por lá e vejam como tenho razão.

15 setembro 2005

Naufrágio


Desisto. Estou à deriva pelo menos uns cinco dias, tudo que vejo é azul. Nenhuma esperança é mais crível quando se passa cinco dias à deriva. Tudo se esvai em noitediasedenoitediasedenoitediasede. Todo náufrago é resumido a isso até a morte. Estou perdendo a noção das noites, dos dias, mas da sede não: a sede se configura perene na garganta, tanta água e tanta morte se aproximando. Estava indo em busca do meu destino, parecia fácil, parecia ali, a felicidade no outro lado do Atlântico, viagem de barco, simples, só, morar em Portugal, conhecer o túmulo de Pessoa: “por que não ergue ferro e segue o atino de navegar, casado com seu fado?” resolvi aceitar o desafio, nos trópicos minha vida de homem rico foi de felicidades aparentes, o dinheiro é um combustível intenso, mas às vezes tem a inutilidade de toda esta água do mar. Vou abandonar tudo e morar na Europa, comprei o barco, tracei a rota e fugi. Mais uma noite começa, será a sexta noite que estou à deriva? Porque resisto? Devia me afogar aqui mesmo, coisa rápida, mas este resquício, este chamado verde dizendo, segura, agüenta, fica mais um pouco neste bote inflável, logo te acham, logo te recuperam para a vida. Antes da tempestade entrei em contato avisei minha rota, latitude, longitude, depois meu barco afundou, onda demais para ele, vida demais para mim, muita procura, muita caverna no peito, é o que me fiz em terra, agora, pedaço de nada boiando sobre o nada, não me acharão, estou como sempre quis ser: levado pelas correntes, pelo acaso, em algum lugar paro, em alguma fundura me estabeleço, a sede ainda habita a garganta, a memória já faleceu, estou delírio, estou aberto às estrelas, às ondas, agora que preciso de tempestades, me esquecem, agora que preciso de ilhas, me abandonam: “a minha vida é um barco abandonado” A minha morte, Fernando, são as gentes que não vi, são os traços delicados sobre o papel antes do desmaio, antes da tua cirrose, antes da minha escolha de retornar à Pátria Mãe. Não vislumbro mais coisa qualquer, já nem sei se estes escuros vêm da noite ou dos meus olhos fechados. Tanto dinheiro. Barco de última geração. Suporta qualquer tormenta. Esqueceram de me avisar: eu não suporto tormento, eu não suporto o perder-me no azul, o desmanchar-me em sede, esquartejar a sorte até que os ossos fiquem pó. Parece mais um sol na distância, parece mais um dia para o nada, parece que a sede começa a acabar.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Armand Lluent

Mais Bergman

Cenas de um Casamento
Ingmar Bergman

Johan:
Você quer saber em que consiste minha segurança? Vou lhe contar. Eu penso assim: a solidão é absoluta. É uma ilusão uma pessoa convencer-se de outra coisa. Tome consciência disso. E tente agiir em coerência com isso. Não espere nada, nada a não ser um inferno na terra. Se acontecer algo agradável, melhor. Não acredite nunca que você poderá quebrar a solidão. Ela é absoluta. Você poderá fazer poesia sobre a coexistência em vários planos, mas ainda assim será apenas poesia sobre religião, política, amor, arte e assim por diante. A solidão é total da mesma maneira. A ratoeira está na possibilidade de ela poder ser alguma vez dominada por uma miragem de coexistência. Esteja consciente que é uma ilusão. Assim, você não ficará decepcionada depois, quando tudo voltar ao seu normal. Uma pessoa tem de viver pelo instinto da solidão absoluta. Nessa altura, a pessoa deixa de lamentar-se, deixa de afligir-se. É aí que a pessoa, de fato, passa a sentir-se bastante segura e aprende a aceitar a falta de sentido da vida com certa satisfação. Com isso, não quero dizer que a pessoa se torne passiva. Acredito que se deve lutar o mais possível e o melhor possível. Por nenhuma outra razão a não ser a de que uma pessoa se sente melhor fazendo o seu melhor do que desistindo.
(...)
Marianne:
Você falou de solidão, esta tarde. Quer dizer, você falou de que a gente deve confessar que está só. Eu não acredito no seu evangelho de solitário. Eu acho que isso mé uma prova de fraqueza.

13 setembro 2005

O sol

A vida líquida
se molda ao corpo.

Respirar cinzento.
Azul na memória,
talvez futuro.

O sol gaivota o tempo
em outro lugar.

Espero.

® Rubens da Cunha

10 setembro 2005

Autores Catarinenses: Martinho Bruning

Natural de Tubarão/SC, formou-se em Filosofia Pura pela PUC, de Porto Alegre, mas residiu muitos anos em Blumenau, onde sempre sentiu-se em casa. A dedicação à poesia só aconteceu na década de 70, após a aposentadoria no serviço público federal.
Martinho Bruning se especializou neste mistério que é este poema de origem oriental.
Publicou diversos livros, buscando sempre a harmonia, a simplicidade, a poesia delicada dos hai kais. Nasceu em 1921 e faleceu em 1998. Dizia: "um hai-kai deve ter no máximo 17 sílabas para fundar-se como obra de arte literária concisa; mais que isso perde a essência oriental..."

Do livro: Hai kais Escolhidos - Edição do Autor

A paz dos jardins
ao sol... Mínimo rumor
de pétalas e asas.

.

São os elegantes
quero-queros. A rigor.
Sempre vigilantes.

.

Por cima do muro
o espanto dos girassois
diante do mundo.

.

Arranjo de flores,
minhas mãos toscas e trêmulas...
Difícil o acordo.

.

No colo do pai
a menina ergue a mãozinha,
a lua tão próxima...

.

Negócios demais.
Fito as montanhas e o céu
- irrepreensíveis.

.

A tarde sombria,
o plátano outonal
é um resto de sol.

.

Vaga enorme noite,
só, o coração galopa
em nenhuma estrada.

.

Toco num rochedo:
sensação de estar tocando
em antigos rostos.

.

Duas, três palavras,
melhor, nenhuma palavra:
os pássaros cantam.

08 setembro 2005

Confissão - (só mais um de metalinguagem)

Verbo dos inícios: cântaro.

pensar melindres:
escusa casa de si.

Ser o que labirinta
entre vencidos.

Ser fecho de intrigas,
entregas no latir do poema.

Ser pai da palavra:
outra moeda,
cara de cobre,
cobrindo as vergonhas
com as mão nuas.

Corroer o corpo minado.

Ser pétala da palavra:
estrume,
farelo de pedra,
raiz inculta.

Ser mãe da palavra:
matriarca do desaforo,
do desafogo.

Levantar o vestido
e alçar por entre as pernas
o sexo púnico do verso natimorto.

® Rubens da Cunha

Duas coisas que fiz muito pouco

Duas coisas que fiz muito pouco: hai kais e poemas para filmes. Este é uma espécime rara, o que não lhe garante nada, é óbvio.

HAI KAIS PARA OS SONHOS DE KUROSAWA

1

Raposa no sol.
Sol em meio a chuva de sonhos.
Sonhos nos arco-íris.

2

No pomar o corte:
o espírito pessegueiro
chora no menino.

3

O branco da vida
no gelo infindo da morte
supera a nevasca.

4

O cão anuncia a luz.
No túnel marcham soldados
e a consciência ladra.

5

Corvos voam na tela:
Visões do homem sem orelhas.
No céu gira o sol.

(C) Rubens da cunha

Filmes da Semana

Amanhã é dia de estréias no cinemas da província.
Tomara que eu não fique mais uma semana sem ir à sala das ilusões.
Nesta semana vi estes filmes na ilusão menor do DVD e do VHS.

Má Educação. De Pedro Almodóvar.

Um Almodóvar menor, mas mesmo assim um Almodóvar. Senti falta do humor e da ternura tão bem equilibrados nos filmes anteriores. Acho que ao levar a história para perto de sua vida pessoal, Almodóvar ficou com algum tipo de receio e fez um filme frio. Definitavamente, Gael Garcia Bernal tem que ser assisitido de joelhos.





Whisky - de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll

Uma pérola vinda do Uruguai. Três atores em cena: Andrés Pazos, Mirella Pascual e Jorge Bolani fazem um filme de silêncios e tristezas. Um filme com humor nervoso, constrangedor, daqueles que dá vontade de agarrar os personagens e fazer com que eles tomem uma atitude mais radical. Um retrato, não só do Uruguai, mas de toda a vida vítima da rotina, da massificação. A atriz Mirella Pascual é um achado. Um dos melhores filmes latino americanos que eu vi até hoje.


Memórias Póstumas de Brás Cubas de André Klotzel

Transpor a obra-prima de Machado para o cinema não é tarefa fácil. Klotzel optou por um caminho acadêmico, certinho demais, com um Reginaldo Faria até competente, mas sem a verve do Bras Cubas literário. Infelizmente o filme se tornou uma espécie de resumão para vestibulandos e acadêmicos preguiçosos.






Anjos Caídos de Wong Kar-wai

Junto com Almodóvar, o chinês Wong Kar-wai é um dos meus cineastas favoritos. Um experimentador de linguagens. Filmes como "Felizes Juntos" e "Amor à Flor da Pele" são obras-primas de poesia visual. Este Anjos Caídos é de 1995. Mostra uma Hong-Kong noturna, chuvosa, com os personagens errantes e solitarios (uma obsessão de Kar-wai) em busca de algo que nada, nem cidade, nem família, nem o amor oferecem. Tudo isso num ritmo frenético, tenso. Soco básico no estômago

.

E Lá Nave Va de Federico Fellini

Vou ter que falar sobre este filme no "Salve o Cinema" da Univille. São tantas as referências cinematográficas, históricas, musicais que Fellini usa neste "E la nave vá" que é quase difícil saber por onde começar. Além disso tem todas as suas, digamos, idéias fixas: os personagens bizarros, o sonho misturado à realidade, o choque que o inusitado provoca, a poesia visual constante, a meta-linguagem. Um filme de um Fellini maduro, consciente de seu poder artístico e inovador.

05 setembro 2005

Inveja - Litania IV




Antes de sermos dor somos cavalo:
galope nos canteiros da inocência.
Arcabouço de flores consumidas
em noites de batismos e presságios.

Antes de sermos sangue somos cárcere:
verbena soterrada no desejo.
Cadafalso de culpas destiladas
assassinando peles e destinos.

Antes de sermos ar somos advento:
nascedouro de sombras indivisas
gestando despedidas em segredo.

Antes de sermos cais somos inveja:
ancoradouro tácito do olhar
sobre a face feérica dos sonhos.

® Rubens da Cunha
Livro: Visitações do Humano

Ilustração: Luiz Henrique Schwanke

02 setembro 2005

Janela e Culpa

?

O lado interno da casa grita sol.

Mas como apagar
os bolores que covardam as paredes,
a nunca firmeza do piso,
o teto envergado

se a vida lhe é um mênstruo de virgem:
escorrega perna abaixo
e não traz alívio:
falta janela e culpa.

?

01 setembro 2005

Cenas de um Casamento


Falas esparsas do roteiro "Cenas de um Casamento" de Ingmar Bergman
Tradução: Jaime Bernardes
.
"Johan: Pensando bem, eu deveria era estar paralisado de medo, pelo menos é isso que eu acho. Por isso não penso. Eu gosto deste velho sofá de bolinhas e daquela lâmpada de querosene. Me dão uma ilusão de segurança que é tão frágil que chega a ser quase cômica. Gosto de Paixão segundo São Mateus de Bach, apesar de não ser crente, pois essa obra me desperta sentimentos de santidade e de devoção. Sou extremamente dependente do convívio intensivo com nossas famílias, pois isso me relembra as sensações da infância, de estar defendido. Gosto das palavras de Marianne sobre humanismo. É bom para a consciência preocupar-se em ocasiões totalmente erradas. Eu acho que é preciso ter uma espécie de técnica para poder viver e estar satisfeito com a vida. Na realidade, é preciso treinar muitíssimo bem em não se preocupar com isto e com aquilo. Admiro sobretudo aqueles que sabem aceitar a vida como uma piada. Eu não consigo. Não tenho humor suficiente para tais mágicas."
.
"Sra Jacobi: Sim, é de meter medo mesmo. É de fato uma coisa muito estranha o que acontece. Os meus sentidos, quer dizer, o tato, a vista, o ouvido, começam a me trair. Eu posso dizer, por exemplo, que esta mesa é uma mesa, eu posso vê-la, eu posso sentí-la. Mas as sensações são magras e secas, se é que me entende.


.
"Johan: Boa noite
Marianne: Boa noite, meu amor.
Johan: Você acertou o despertador?
Marianne: Sim, eu me lembrei disso, de fato... (pausa) Johan! Se você acha que devemos fazer amor...
Johan: Obrigado pelo convite, mas agora vou dormir. Boa noite, querida.
Marianne: Boa noite. Durma bem."
.
Em breve, novas fala esparsas destas Cenas.