17 julho 2015

Sexta nº 2


no ônibus, na BR 101, entre Cruz das Almas e Feira de Santana, ela chega: bom dia amigo, segura isso e isso aqui também, e me passa a bolsa e outra sacola de plástico, e senta-se, bêbada, troncha, e começa a falar desconexos, e abre a bolsa e mostra um livro de colorir infantil, pincel, tinta, esse eu comprei par minha neta, será que ela vai gostar? inibido, tento me desfazer dos presentes alheios, ela insiste que eu segure, abre novamente a bolsa, olha, pega esse aqui também, abre aí pra nós ver. me passa umas revistas pornográficas, ri despudorada, pergunto se ela vai dar aquilo para a neta também, ela diz que não, me força a abrir, inibido, abro a revista, lembro da adolescência, das revistas encontradas na beira da BR 101 a milhares de quilômetros dali, vejo as fotonovelas, fico rindo por dentro, inibido, peço para que ela guarde. me mostra o celular, não consegue acessar as fotos da família, vou ver minha mãe em Rui Barbosa, saí de Salvador, to a três dias na estrada, e mostra o dinheiro no sutiã, digo pra ter cuidado, podem roubar, não ligo, já roubei mesmo, ele me bateu, juntei o dinheiro e fugi, saudade da minha filha, tenho um filho também, meu pai morreu, e chora, e ri e vai ao banheiro, e volta e tenta me mostrar as coisas no celular, as unhas estão feias, né?
e tenta narrar sua história, inibido escuto, finjo estar cansado, mas agonia-me sorriso triste e amarelado, a voz alta, a melancolia candente, olha a janela, admira-se de que está tudo verde, mostra mais uma vez o dinheiro, ri, chora, fala de novo da mãe, diz que vai ficar em Feira de Santana, dormir na rua até que venha o ônibus, perdi meu pai, saudade da minha filha, minha mãe me chamou, mas não quero ficar lá com ela, e abre a bolsa e mostra mais uma vez a revista pornográfica, pede para que eu fique com a revista, inibido digo que não, fala da outra neta, que ficará sem presente, fala da mãe, abandonada, não sei pra onde vou, as unhas, meu cabelo também tá feio, sou feia, né? inibido, vou disfarçando, amenizando, vendo a paisagem, ela bêbada, troncha, segue sua ladainha, em Feira de Santana, sai rapidamente do ônibus, cambaleante, perde-se na multidão presente na rodoviária, enquanto eu me encontro mais uma vez sóbrio, incapaz de pertencer às agruras do mundo.



Ilustração: Vakho Kakulia