24 março 2009

1
ele
esquina de pedra

ela
enigma
barro barroco
em mãos cautas

2
ele
luz atarefada

ela
dobra
salmora verde
limo na fissura

1+2
poucos
parcos
vastos
vistos

12 março 2009

Helga - a que se deixa




Amanheceu. Helga se deixou ir correnteza abaixo. Pernas e braços diluiram-se nas águas turvas do rio. A cabeça afundou até conhecer as funduras. O tronco boiou, virou peça de descanço para garças e biguás. A alma, dizem, foi pescada por uma nuvem.



Ilustração: Howardena Pindell

06 março 2009

Libertação

Naquela manhã, os internos do sanatório acordaram avessos: curados e vingativos.
Alguns médicos e enfermeiros não se adaptaram bem à camisa de força...

02 março 2009

Amanda - a devoradora




Amanda olhou os retratos, não gostou. Más recordações. Lembrou-se da mão do fotógrafo sobre a blusa. Abre um pouco, ele falou. Ela abriu mais que a blusa. Sempre abria mais que a blusa. Gostava disso, o problema é que o fotógrafo foi o último homem que Amanda devorou.
Com os outros, sempre obtusos, tinha sido fácil. Alguma dissimulação, um sal diferente nos olhos e na língua, e pronto, Amanda os comia inteiros, almoço e janta. Porém com o fotógrafo algo aconteceu, ele não ficou pronto de imediato. Ela articulou outras possibilidades: adensou os carinhos, salgou ainda mais olhos e língua, com isso tirou muitos retratos, expôs-se tanto, beirando o avesso, que teve medo. De nada adiantou. Ele não ficava pronto para o devoramento. Amanda partiu para uma ideia absurda, homem nenhum exigiu tanto de si: ela o abandonaria, disse que ele era pouco para sua fome. Quase não acreditou quando o viu vindo de volta, pedindo guarida, dizendo-se que agora seria suficiente para saciá-la. Amanda, só para ter certeza, renegou mais um pouco, mas foi traída pelo rosto desejoso da carne do fotógrafo. Ela repreparou tudo, refez tudo o que sabia, ineditou alguns passos e numa noite chuvosa, semifria, devorou o fotógrafo. Antes pediu que ele batesse algumas fotos suas, nua na janela, sempre sonhara com isso, e essa era hora de realizações. Ele fez seu desejo.
Amanda continuou olhando os retratos daquela noite. Nunca mais conseguiu provar de tão precisa carne masculina. Tentou outros, mas sempre com o gosto dos primeiros, por isso jogava-os fora, aos cães e porcos. Nunca mais mastigou algo parecido com o fotógrafo pois sabia que ele viu sua alma também nua na janela. Amanda chorou mas não destruiu os retratos. Chorou mais por sua condição: ao devorar o perfeito, extingue o perfeito. Soube disso e disse adeus ao desejo. Iniciou pelo joelho direito e o tornozelo esquerdo um autodevoramento contumaz.
Restou apenas a parte da mão, o polegar e o indicador segurando firme, quase tristes, a foto da moça, da alma, nua na janela