29 junho 2008

Carolina nasceu calada
atrás do vidro azul.
Cresceu transparente:
silêncio de vento vazio.

Carolina sonhou cântaros.
Catou gris pecados
no fogo fêmea
da fina ilusão.

Depois que tudo
foi apedrejado pelo tempo,
Carolina coseu para si
um manto de renúncia

e desmaiou, órfã,
sobre a lápide da palavra.

27 junho 2008

Para ler aos gritos

trânsito de vento

a liberdade

amacia folhas
peles
papéis

a liberdade
acaricia

os desníveis do ser

e soa

sonha intrínseca no
sangue humano

e inumano

que o livre
desescolhe morada

o livre aporta
sobre coisa qualquer
que se faça
recipiente

escolhas
escalas
escadas barítonas
da palavra

o livre livra
todo
corpo cárcere

o livre abre
expande
esclarece
verbo pleno

plano de vôo e fuga

águia gavião

libélula

liberdade ave
de arribação

ave mítica
fênix
pégasus
ícaro

ardência nos costados

tangível apenas
pelo espelho
concêntrico
do sentir-se

liberdade

poema invisível
ausente

preenchido
somente
com desejo
e delírio

24 junho 2008

Inhoçara

Teu segredo é coceira
nas costas de quem te carrega.

És madeira para caibros,
para mangueiras e currais.
Aprisionas bem bois e porcos.

Isso és quando te deitam
fora da capoeira.
Antes, te fazes
casa de sabiás e sanhaços.

Na tapeçaria de tuas folhas
ávidos marimbondos
fornicam, vivem, morrem.

És frágil frente à tucaneira,
o cedro, o garapuvu.

Apenas o teu nome
te defende: Inhoçara.



P.S.
Nas terras de meu pai há uma árvore muito comum.
Ele sempre a chamou de Inhoçara.
O oráculo Google diz que não existe tal nome.
Acredito mais em meu pai.

seqüencia 2 - a nudez

a nudez
não serve ao calabouço
dos entregues

a nudez
se neblina e some
sumo no livro sagrado

a nudez
serva serena da vergonha
se disfarça em organza

e desaparece - defunta vestida - entre árvores e silêncio

seqüência 1 - a pele

a pele
debaixo dos pés
sombreia cascalhos
ventania tudo
que crispa a vida
a pele
debaixo das mãos
saboreia confins
amoras
pureza

a pele
debaixo do olho
fosforeia a noite
vermelha da agonia



o corpo todopele salga-se salva-se tato e lume

17 junho 2008

fogo baixo

o corpo
queima lento
comemora
as cinzas
a memória
sangra
na tarde sísmica

e
- criança desusada -
perde-se

Vestígios de um Sinônimo

Inspirado numa idéia do Enzo
A esposa o chamou: Marcos, vem foder comigo! Agora!

Ele dirige e ri. Só não consegue rir da paixão secreta que ele e a esposa sentem por Moisés.
Moisés é seu irmão, irmão gêmeo.

Marcos, com algum custo, casou-se com Sílvia. Moça pobre, desprovida de maiores encantos físicos, mas simpática e atrevida na cama. Vai ser boa esposa, disse o pai, e depois como você vai arranjar coisa melhor? Iria casar porque tinha que casar.
A esposa ao ser apresentada ao cunhado reluziu. Lindo teu irmão. A partir dali Marcos teve a certeza: amaria o irmão via esposa.

Chega em casa. Despe-se. Sílvia dança encostada na parede. Segura uma foto. Alisa-a contra os seios, entre as pernas, lambe a foto. A foto do teu irmão e eu fodendo agora de manhã. Olha. Marcos ajoelha-se para pegar a foto. Ajoelha mais. A esposa pisa sobre sua cabeça. Ele chora sobre a foto do irmão. Eu tinha que estar no teu lugar, eu tinha que ter Moisés colado em mim, sobre mim, debaixo de mim, ao meu lado, mais que irmão, mais que amante, eu tinha que ser Moises, ser ele, ser ele, não podia ser eu, tinha que ser ele. Silvia levanta o marido. Provoca-o com palavras duras e doces. Pára de se lamentar, você tinha um encontro marcado comigo, então, vem me comer, vem misturar tua porra com a do teu irmão dentro de mim, vem ser o que ele foi há menos de duas horas. Seja homem de verdade Marcos, fode comigo como se você tivesse fodendo com teu irmão, como se ele tivesse fodendo aqui com a gente.

E Marcos se engrandece, possui a esposa, o irmão, a si próprio, com voragem pouco vista em homem.

E Silvia ama ser amada pelos dois, ou por um só, já não sabe mais.

E a felicidade se manifesta plena numa tarde de segunda-feira.

16 junho 2008

Decisão

É agora:
a decisão certa pela primeira e última vez.
Pulou do 15º andar.

10 junho 2008

Variações no Espelho

1
Dentro
no húmus calabouço do corpo

o sopro sobra vasto

voz

porto



2
Dentro do calabouço

o húmus do corpo
sobra um sopro

vasta voz

porto



3
Dentro do corpo
no calabouço húmus

a sobra sopra

voz
vasto porto

09 junho 2008

passagem de gritos
nos esconjuros
rosários

homens voejam sobre bucetas
ávidos de mais dor

mais dor e vento

estorvam a pele
descascada das mulheres

fáceis
frágeis ostras

nadam
no vocábulonada
dos machos

mesmo assim
somente elas podem
sentenciar a vida

a pastagem da vida

Mair Nazário Souza

Mair Nazário Souza, demônio encardido, salmodia no escuro: Deus, olha teu filho de chifres tristes, resgata teu filho de pele feminina, dê a ele uma infância de corsários, daquela bem azul.
E Deus se compadece da voz tenra de Mair e o resgata. Depois disso, passou a carinhá-lo todas as manhãs.

- Isso é um escândalo!
Depenou-se o Espírito Santo, acompanhado por um Jesus envolto em ciúme.
Mas Deus, irredutível, afirmou que Mair é seu preferido. E que agora a santíssima trindade será uma santíssima quadratura.

01 junho 2008

Sede

limo nos cântaros
sede demais no lado baixo da cabeça

sempre
um sussuro de cascalhos
perfazendo - frágil -
casulos
temporais
medos de chumbo

abrir a janela?
por luz dentro do quarto
e
desfazer a lei da noite adâmica?

não há palavra
que responda
ao sopro do deus do rascunho

somente existe
o longo atalho
até o fora que nos compõe