27 maio 2015

A praça de leitura assassinada

Assassinaram uma praça de leitura. Foi ali, na Reta, em São Francisco do Sul. Eu a conheci quando estive na escola. Ela foi uma praça construída pelo esforço de alguns educadores e alunos, que dentro das limitações, alargaram a criatividade e construíram um delicado espaço de leitura e aprendizado. Na praça assassinada havia também uma pequena horta comunitária. Os bancos eram feitos de pneu chumbado. A estética da praça foi pensada para remeter ao universo dos caminhoneiros, atividade predominante na região. Repito: essa singela praça de leitura foi assassinada. Homens com trator chegaram à escola, numa tarde qualquer, terraplanaram o pátio. Onde havia uma praça de leitura, ficou um vazio analfabeto. Os assassinos da praça, esses homens e mulheres do poder, disseram que ela estava incomodando, que ela era uma ameaça por causa do surto de dengue, que ela estava abandonada, por isso foi melhor matá-la. Cinicamente, eles prometeram outra praça no lugar, mas uma praça mais adequada aos seus modelos de educação: uma praça fechada, com cercas, alambrados, toda cimentada, uma praça bem neoliberal e não mais essa praça feia, feita à mão, cheia de pneus que remetem a “pobreza” da região. O fato é que os homens e mulheres do poder assassinaram a praça pobre da escola. Não pensaram em reformá-la, não pensaram em investir nela como espaço possível de educação e cidadania, não pensaram em fazer dela um modelo transformador, não pensaram em fazer daquele breve espaço no meio da escola num amplo espaço de liberdade, de consciência humanitária. Não, os responsáveis pela escola só pensaram em assassinar a praça de leitura. A analogia é óbvia: a praça de leitura assassinada são todos os deixados de lado, os excluídos, os assassinados pela indiferença, pelo preconceito, pela mesquinharia dos homens e mulheres do poder. A eles não é dado o direito de existência, melhor, eles só podem existir se forem invisíveis, se não incomodarem o andamento dos trabalhos. E, convenhamos, uma praça de leitura é um incômodo, um percalço para essa gente que não gosta leitura e de toda a força, liberdade e vida que ela traz. Uma praça de leitura foi assassinada. Definitivamente, é tempo de luto e de luta.

13 maio 2015

Quarto Elemento: água

Crônica publicada no Jornal A Notícia em 13/05/2015

Volúpia. Pedaço líquido de alma. A água nos permeia. Transita vasta em nos corpos vivos. Sangue, suor, seiva, mijo e demais liquescências. A água se faz escorreita. Concentrada, ela é o oceano, impossível à morte da sede. Menor, ela é um rio, deslizante, ofídica, ela perpassa planaltos, planícies, montanhas, cidades. Presa em si mesma, a água é um lago, uma lagoa, que espelha céu e inferno enquanto evapora-se, para depois chover em outro lugar. Água, cujo carinho é chuva, esse voo sem paraquedas, esse acontecimento que umidifica, rega, abastece, enche de verde a morada dos vivos. Água: poço, poça, pedaço concentrado de vida. Olho d´água, breve ruptura que se espalha terra acima. No entanto, abaixo, os lençóis freáticos, esses mares subterrâneos do planeta. Água: metamorfose. Capaz de ser sólida, liquida, vaporosa. Água capaz de manter os corpos longe da putrefação, capaz de afundar navios titânicos. Água capaz de embranquecer os polos da terra, capaz de disfarçar os ursos polares. Água sólida, cujo nome é Alasca, Groenlândia, Antártica, cujo nome também é iglu, essa casa de gelo dos esquimós. Água capaz de preencher cada espaço vazio, de romper cada barreira, de infiltrar-se fresta a dentro, montanha abaixo, até engolfar-se no grande mar. Água gasosa, vapor, voo, invisível pertinência que nos rodeia. Água: ar, até que se canse, até que se modele em garoa, chuva, líquida queda, até que encontre o frio, a dureza aguda do gelo. Água, corpo de mudança, contínuo movimento, dança. Copo, vaso, cano, jarra, garrafa, prisões inventadas para a água. Ela se quer livre, limpa, insípida, incolor e inodora, como ensinam nos colégios. Até quando a água será um desperdício? Até quando a água será condenada a ser esgoto dos homens, se a natureza a condenou a ser cachoeira, chuva, tempestade, rio, mar, oceano e demais formas perfeitas? Até quando a água resistirá sem se tornar um ácido, um veneno? A vingança da água parece não tardar, e por certo não falhará. Se o mal não é o contrário do bem, mas a ausência do bem, aos poucos, saberemos todos, culpados e inocentes, que a falta da água será muito mais do que a sede.
Rubens da Cunha

06 maio 2015

Terceiro Elemento: Fogo

Crônica publicada no Jornal A Notícia em 06/05/2015 

 “Toda combustão acompanhada de desenvolvimento de luz, calor e, geralmente, de chamas”. Assim se estabelece a primeira das definições de fogo nos dicionários. Que outra coisa pode gerar luz, calor e chamas? Que outra coisa se presta tão prontamente a ser metáfora para a paixão, o amor descomedido ou o ódio, ou a fúria? Fogo é febre. É fome que de tudo se alimenta: madeira, plástico, ferro, carne, alma e o mais que se lhe apresenta. Fogo: parceiro quando sob controle, adestrado pelos fogões, candeeiros, lampiões, ou até mesmo no aparente caos das fogueiras festivas. O fogo assim é um tigre enjaulado, melhor, é como aqueles tigres do Zoológico Lujan, estão lá, mas não estão lá. Assim é fogo dominado por mãos humanas: fundamental para a sobrevivência, mas é uma fera enjaulada, qualquer desatenção ela pode lhe atacar, lhe arrancar um pedaço do corpo, da casa, da vida. Não por acaso, um dos sonhos das crianças é ser bombeiro, esta profissão que ataca, controla, e mata o fogo. Não por acaso bombeiros são heróis, sujeitos entregues a árdua batalha de vencer labaredas, de vencer esse símbolo do inferno. Fogo: Jano. Dois lados, se ele aquece, cozinha, ilumina, ele também queima, destrói, inferniza eternamente os pecadores. O fogo só é permitido ao olhar e ao escutar, nossos sentidos da distância. Tato, paladar lhe são completamente proibidos. Jamais teremos o fogo nas mãos, jamais saberemos qual é o gosto do fogo. Sempre há nos queimados as fortes cicatrizes dessa proibição. Quando ao olfato, também não sabemos qual é o cheiro do fogo, pois o que nos chega é o cheiro daquilo que o fogo está comendo. O cheiro do fogo em si mesmo não existe. Resta-nos apenas ver, pois até mesmo o ouvir é mais sobre os gritos do que está sendo queimado, do que do fogo propriamente dito. Vemos então, à distância, uma pequena gota amarela, que pode se transformar numa parede de chamas, num alaranjado intransponível, ardoroso, esfomeado. Vemos o fogo esplendoroso consumir-se a si mesmo, até virar brasa, esta última tentativa de resistência ígnea, e depois carvão, cinza, resto. Mas ele acaba sempre temporariamente. Em breve renascerá, seja sob o controle das mãos humanas, seja sob o descontrole dos acidentes ou da natureza. 

 Rubens da Cunha