05 novembro 2005

Pequenos trechos de uma insônia


(...) Calores assombram a noite no sul do país. Vejo caminhões, caminhantes, andarilhos que nunca serei. É quase meia-noite nestes metros quadrados que o destino me deu. O poema ainda é um gesto na cabeça. Ou um lapso, talvez de lá nunca saia, talvez aconteça no próximo instante. Como diria a mãe Clarice “que não me entendam, pouco se me dá”. O que quero é distância e silêncio. (...)

(...) Há um mundo rorejando ao meu redor. Gato invisível. Tigre transtornado em solidão. Há um mundo vestido de catarse, balançando um pêndulo na frente dos meus olhos. O que sou em cegueira deixo de ser sol. Como diria o pai Gullar “Uma parte de mim, pesa, pondera: outra parte delira”. O que quero é fascínio e madrugadas rotas. (...)

(...) As ruas da cidade estão esvaziadas. Dentro das casas os pecados acontecem. Um ou outro desavisado anda por estas horas. Não o imagino um igual. É apenas mais um perdido. Nada está aberto, nada está comércio. Nem as prostitutas estão vivas. Enquanto o sono não me visita, penso em Álvares de Azevedo, tão jovem, tão cria de seu tempo. E eu? Sou filho de que tempo? O de agora morre, me fez órfão. Grito para os muros o que o irmão Carlos sussurrou nos meus ouvidos: “o tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. O que quero é paciência e louvor. (...)

(...) No quarto, a cama, os lençóis amarrotados sem nenhuma história de amor para contar. Na parede, cartazes de filmes, fezes de lagartixas, sujeiras aéreas. Tenho preguiça de limpar. Quero dormir, preciso! Quando o dia se impuser, terei que ser comum, visível, terei que ser ‘bom-dia', ‘pois não? posso ajudá-lo?'. Terei que ser meu disfarce. Sem falhas. Sem gretas por onde saem-entram as dúvidas. Conto carneiros, penso em Breton, em Virgínia. Mantenho os olhos fechados. Acontece o sono. A insônia despede-se cantando o que minha filha Hilda lhe ensinou: "Como se te perdesse, assim te quero. Como se não te visse (favas douradas sob um amarelo) assim te apreendo brusco Inamovível, e te respiro inteiro”. (...)
Rubens da Cunha

11 comentários:

Anônimo disse...

Rubens...já leste Mia Couto? Em caso de resposta negativa, me manda em pvt teu endereço que te mando um Mia Couto de presente. Em agradecimento à leitura que tens proporcionado aqui na Casa e ao aprendizado que me possibilitas lá na OE. Abração.

Cláudio B. Carlos disse...

É sempre bom passar por aqui...

1 BALAIO de abraços

CC.

Anônimo disse...

O delírio mergulhado no que chamam de real
Ou o contrário

Sou o tempo do filho
Logo mais o filho será meu tempo

Preocupo-me
Meus disfarces são agora poucos
Penso, penso e escolho o mesmo
Que sem graça!

Muito bom teu texto!Identifico-me muito com o que escreves
Abraços, Íta.

Claudio Eugenio Luz disse...

Na insonia dos pensamentos, você procura desperta em nós sentimentos mais humanos, meu caro.

..
hábraços

Anônimo disse...

ai..Rubens...
companheiro de insônia e de delícias.

lindo...lindo...

Anônimo disse...

Belo post. Belo blog. Meus parabéns!

Anônimo disse...

Rubens, que angustia! Vc consegue passá-la de uma forma densa e forte. Um soco. Parabéns

Cláudio B. Carlos disse...

Cara!
Acabo de ler teu eBook "A BUSCA ENTRE O VAZIO". Narrativas fortes... Devolvo as palavras que deixaste lá no BALAIO: Coisa de gente grande!

Abraços do CC.

Kimu disse...

Fragmentos de insônias em metáforas. Que mais eu posso te dizer? Bjos.

Anônimo disse...

agoniante...

quero mais ensaios sublimes.

Mme. A. disse...

Te enxergo mais aqui que em tua auto-biografia. Ainda que alguns detalhes de lá possam ter me ajudado a entender um pouco do concreto em suas palavras.

E a beleza que vejo na vida que vc chama de medíocre é indescritível. Gostaria de te ver no canto do quarto, escrevendo qualquer coisa, ser uma mosquinha pousada no canto do copo, olhando como seu rosto se contorce enquanto vomita suas verdades nas folhas brancas, enquanto as relê antes de publicá-las neste papel invisivelmente azul.