02 março 2009

Amanda - a devoradora




Amanda olhou os retratos, não gostou. Más recordações. Lembrou-se da mão do fotógrafo sobre a blusa. Abre um pouco, ele falou. Ela abriu mais que a blusa. Sempre abria mais que a blusa. Gostava disso, o problema é que o fotógrafo foi o último homem que Amanda devorou.
Com os outros, sempre obtusos, tinha sido fácil. Alguma dissimulação, um sal diferente nos olhos e na língua, e pronto, Amanda os comia inteiros, almoço e janta. Porém com o fotógrafo algo aconteceu, ele não ficou pronto de imediato. Ela articulou outras possibilidades: adensou os carinhos, salgou ainda mais olhos e língua, com isso tirou muitos retratos, expôs-se tanto, beirando o avesso, que teve medo. De nada adiantou. Ele não ficava pronto para o devoramento. Amanda partiu para uma ideia absurda, homem nenhum exigiu tanto de si: ela o abandonaria, disse que ele era pouco para sua fome. Quase não acreditou quando o viu vindo de volta, pedindo guarida, dizendo-se que agora seria suficiente para saciá-la. Amanda, só para ter certeza, renegou mais um pouco, mas foi traída pelo rosto desejoso da carne do fotógrafo. Ela repreparou tudo, refez tudo o que sabia, ineditou alguns passos e numa noite chuvosa, semifria, devorou o fotógrafo. Antes pediu que ele batesse algumas fotos suas, nua na janela, sempre sonhara com isso, e essa era hora de realizações. Ele fez seu desejo.
Amanda continuou olhando os retratos daquela noite. Nunca mais conseguiu provar de tão precisa carne masculina. Tentou outros, mas sempre com o gosto dos primeiros, por isso jogava-os fora, aos cães e porcos. Nunca mais mastigou algo parecido com o fotógrafo pois sabia que ele viu sua alma também nua na janela. Amanda chorou mas não destruiu os retratos. Chorou mais por sua condição: ao devorar o perfeito, extingue o perfeito. Soube disso e disse adeus ao desejo. Iniciou pelo joelho direito e o tornozelo esquerdo um autodevoramento contumaz.
Restou apenas a parte da mão, o polegar e o indicador segurando firme, quase tristes, a foto da moça, da alma, nua na janela

11 comentários:

Mme. A. disse...

maravilhoso, rubens. ando pensando muito a respeito do desejo. ando entalada criativamente, mas acho que a loucura do dia-a-dia e o final do torpor das férias vão contribuir para que eu volte a escrever.

bem, é o que espero.

gosto do que escreve, ainda que eu sempre penda a gostar mais de sua prosa. às vezes é difícil a gente ter a chave da poesia dos outros.

besos.

Unknown disse...

Oi, Rubens.
Tanto me identifico que peço a permissão para publicá-la no meu blog, com devidos créditos e links.
Pode?
Adorei.

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Certa vez, uma mulher assim como Amanda, me devorou; me triturou como se tritura carne para sarapatel ou croquete, desses servidos em botequim de quinta categoria. E digo mais, como se eu fosse atum pro seu sushi especial de fim de semana. Lhe confesso, Rubens, que eu nem tirei foto dela, apenas lhe trai com outra Amanda. Elas são por demais devoradoras, isso eu sei, poeta!

:.tossan® disse...

Belíssimo texto! O fotógrafo na certa não era eu. Mas poderia ser. Abraço

Minha cura
É noite insone
meu ímpeto
é o silêncio.
Nada mais,
por isto escrevo!
*tossan

Udo Baingo disse...

A avidez ad absurdum e o triângulo musa-obra-criador em um só. Conto realista, imagética estridente, que usa o Fantástico como uma estampa. Fusão puxando para o erudito. Achei que podia ser menor (micro-conto) ou mais longo (novela, por exemplo).
Parabéns, está muito bem escrito, como sempre!
Abrs!
u.

Anônimo disse...

absurdamente maravilhoso.
suas mulheres.. suas mulheres!

Anônimo disse...

absurdamente maravilhoso.
suas mulheres.. suas mulheres!

Anônimo disse...

absurdamente maravilhoso.
suas mulheres.. suas mulheres!

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Quanto ao seu comentário lá no meu blog, sobre as reformas ortográficas, eu espero, também, estar vivo, Rubens para ver isso.

Ah, a propósito, sou do tempo em que aprender era o mesmo que experimentar.

abçs

Mara faturi disse...

Aff, que saudade daqui....saudade de devorar sua poesia;)
bjos*)

Amanda disse...
Este comentário foi removido pelo autor.