15 setembro 2005

Naufrágio


Desisto. Estou à deriva pelo menos uns cinco dias, tudo que vejo é azul. Nenhuma esperança é mais crível quando se passa cinco dias à deriva. Tudo se esvai em noitediasedenoitediasedenoitediasede. Todo náufrago é resumido a isso até a morte. Estou perdendo a noção das noites, dos dias, mas da sede não: a sede se configura perene na garganta, tanta água e tanta morte se aproximando. Estava indo em busca do meu destino, parecia fácil, parecia ali, a felicidade no outro lado do Atlântico, viagem de barco, simples, só, morar em Portugal, conhecer o túmulo de Pessoa: “por que não ergue ferro e segue o atino de navegar, casado com seu fado?” resolvi aceitar o desafio, nos trópicos minha vida de homem rico foi de felicidades aparentes, o dinheiro é um combustível intenso, mas às vezes tem a inutilidade de toda esta água do mar. Vou abandonar tudo e morar na Europa, comprei o barco, tracei a rota e fugi. Mais uma noite começa, será a sexta noite que estou à deriva? Porque resisto? Devia me afogar aqui mesmo, coisa rápida, mas este resquício, este chamado verde dizendo, segura, agüenta, fica mais um pouco neste bote inflável, logo te acham, logo te recuperam para a vida. Antes da tempestade entrei em contato avisei minha rota, latitude, longitude, depois meu barco afundou, onda demais para ele, vida demais para mim, muita procura, muita caverna no peito, é o que me fiz em terra, agora, pedaço de nada boiando sobre o nada, não me acharão, estou como sempre quis ser: levado pelas correntes, pelo acaso, em algum lugar paro, em alguma fundura me estabeleço, a sede ainda habita a garganta, a memória já faleceu, estou delírio, estou aberto às estrelas, às ondas, agora que preciso de tempestades, me esquecem, agora que preciso de ilhas, me abandonam: “a minha vida é um barco abandonado” A minha morte, Fernando, são as gentes que não vi, são os traços delicados sobre o papel antes do desmaio, antes da tua cirrose, antes da minha escolha de retornar à Pátria Mãe. Não vislumbro mais coisa qualquer, já nem sei se estes escuros vêm da noite ou dos meus olhos fechados. Tanto dinheiro. Barco de última geração. Suporta qualquer tormenta. Esqueceram de me avisar: eu não suporto tormento, eu não suporto o perder-me no azul, o desmanchar-me em sede, esquartejar a sorte até que os ossos fiquem pó. Parece mais um sol na distância, parece mais um dia para o nada, parece que a sede começa a acabar.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Armand Lluent

4 comentários:

Anônimo disse...

Dá sede...Abs!

Anônimo disse...

amei isso:
"noitediasedenoitediasedenoitediasede"

[jb]

Claudio Eugenio Luz disse...

Após uma tormenta, às vezes vem outra.

hábraços

Helena disse...

"Todo náufrago é resumido a isto até a morte"

- tédio e esperança, azuis e navegar que é preciso.

beijão,

Helena