08 maio 2018

4 cenas em 4 instantes




Instante 1
Jogados sobre o chão de madeira, uma calça de pijama, sapatilhas e um djembê.
Persianas fechadas.
Na estante sem livros, repousam, solenes, uma vela e um vibrador.

Instante 2:
O tapete cobre o chão de madeira.
Uma vela acesa sobre um caderno de rascunhos ameaça, lentamente, escrever um incêndio.

Instante 3:
Pendurados diante da janela, cadernos, canetas, sapatilhas, calças de pijama: coisas que persianam o calor do poente.

Instante 4:
Sobre o tapete: o vazio.
Abaixo do tapete: o chão de madeira.
Abaixo do chão de madeira: concreto, concreto, depois terra.
Dentro da terra: djembês de fogo.


16 dezembro 2017

Graça

Anda com fantasmas nos ombros e pergunta se os passantes estão vendo.

Nenhum nada enxerga.

Graça desacredita e deixa-se ir
com as suas invisibilidades sobre os ombros

13 julho 2017

Tarde

tarde:
tua geometria cava-me os flancos
e todas as dobradiças de meu corpo.

teu poente emoldurado reconta 
- recôncavo que é -
as tardinhas nos quintais da infância:

quando as águas não eram Paraguaçu, mas Piraí.
quando o Sul era o mundo e este mundo aqui 

nem sonho era.

06 julho 2017

garçárvore

I - Chegada

no fim das tardes
em cima do Rio Paraguaçu

o verde embranquece em asas
pois garças se tornam árvores

arvoram-se

II – Estada

verde e branco dormem sobre as águas

III – Partida

No começo das manhãs
em cima do Rio Paraguaçu

o branco verdeja em folhas
pois árvores se tornam garças


graçam-se

30 junho 2017

É manhã.

Pedro tem as pernas a pélvis a cintura afundadas no Subaé.

Ele pouco sabe das cinzafezes que escorrem no rio.
Pouco faz nojo o lodo margeando seus baixos.

Tarrafeia.

A tarrafa afunda. Pedro arrasta-a para si. Ela vem prenhe de peixes.

A fé na pescaria nunca trai um homem que tarrafeia
como quem desenha círculos límpidos em água imunda.

13 fevereiro 2017

azuis puros

o mundo inunda-se imaturo
é como se fosse um palco tenro
de ruínas irmãs e imundas
são casas espraiadas nos avessos
praias e presépios ao vento
carnavais e canaviais
feitos em doçuras dançantes
em contornos e entornos
de carne e sombra
o mundo é uma fístula aberta
nesses azuis puros demais
.
.
Rubens da Cunha
Verão - Recôncavo - BA

cruzes

o acaso assoma-se
e soma
aslfato
sangue
atropelos
desordens de ossos
último respiro
depois
a morte amadeirada das cruzes
a indiferença dos acostamentos
e o silêncio desencostado dos passantes

28 novembro 2016

O profeta


Matias perdeu o olho esquerdo numa pescaria:
um anzol iscou a retina, rasgando-a.

Não houve jeito: foi-se o olho e a disfarçada sanidade.

Hoje, feito ciclope menor,
Matias passeia entre a Escadinha e o Caquende professando:

- todos terão os olhos pescados pelo Diabo, porque Deus é cego.

09 novembro 2016

CAME-SE

dentro da casa
amantes camam-se

há um pé de gratidão
nesses corpos gozosos

se lá fora a fome temerosa
dita-se crua

aqui

nos dentros da casa
tudo dista-se lençol adentro





24 outubro 2016

Oração


Rosa espelha-se:
lenço na cabeça,
blusa florida,
saia arrastando-se no chão.

Rosa aviva-se em raiva e medo. Está pronta.

Nas ruas de Cachoeira, procura a casa-criatório de orações.

Encontra:
- disseram que aqui criam orações para expulsar maus vizinhos? quero 7, uma para cada dia da semana.

A atendente da loja de xerox tira 7 cópias, cobra R$ 1,40, dá orientações e avisa que se os vizinhos persistirem, Rosa pode voltar que o dinheiro será devolvido.

Não teve precisão.
Rosa agora é toda desavizinhada, como sempre sonhou, melhor, como sempre orou.

19 outubro 2016



Dizem que começou com uma pedra nos rins, depois outra na vesícula.

As pedras cresceram, rochas, rosas e graves.
Avançaram costela acima e romperam as costas.

'São asas', disseram os místicos, e caíram em êxtase diante da santa com asas de pedra e sangue.

'É um afloramento rochoso', disseram os geólogos, e começaram a estudar a composição interna da mulher, junto com nefrologistas.

Ela, por sua vez, carrega o peso das asas desajeitadas, "asas desanjadas" como prefere dizer.

E segue
compacta.
volumosa,

sem voo e sem afloramentos.

25 setembro 2016

Raiz dentro

"Porque há desejo em mim, é tudo cintilância" 
Hilda Hilst


é pra dentro que se cresce raiz mesmo dessas de ficus - que se fixa que se força - é no dentro que se retorce e se merece a cintilância


Peinture de Pierre Desire Eugene Franc Lamy (Paquerête). 
Salon de 1888. 
Photographiée par G. Michelez

01 agosto 2016

Caixa de carne


lá fora
exigem minha voz

mas sou homem de recursos escassos
- boi sem escolhas -
sei pouco das coisas que emprenham

e estou quase mês sem soletrar a dor

por isso escamo feito peixe
feito caixa de carne triste




Ilustração: Rembrandt

01 julho 2016

Ultimo voo




ao recolher a libélula morta na escada
soube que a morte não pesa nada

o que pesa é o esforço tácito
de se levantar um ex-corpo aéreo 

levá-lo em último voo até a janela

e - como se ex-voto fosse -
devolvê-lo ao aberto do dia



Ilustração: Carlos Dalla Stela

15 junho 2016

O presente de Anilda


Tonho sai de casa vestido com a sua melhor camisa do Esporte Clube Vitória. Pouco liga se a Estrada da Matinha está longe do centro da cidade.

Hoje ele tem um objetivo: comprar um presente para Anilda, a companheira de 11 anos dez meses e três dias. Tonho atravessa a Riachuelo, não quer saber de sapatos, blusas, blusinhas, maquiagens.

Olha.
Reolha.

Até que encontra o presente: sai feliz com um babydoll todo em animalprint.

Anilda é onça. Vai caçar hoje à noite, de novo e outra vez.

02 junho 2016

A guardadora da ponte




Há uma mulher que cuida da cabeceira da Imperial Ponte Dom Pedro II. 

Seu corpo arqueado, o queixo quase sempre grudado ao peito, o olhar de baixo para cima e o senho franzido disfarçam os conluios que esta cuidadora tem com o Rio Paraguaçu. 

Em noites desestreladas, ela mergulha na salobridade do rio. Passa horas entre as pititingas, os camarões e siris. Atravessa-se na poluição oleosa e fecal das águas. 

Sabe de peixes e de crustáceos tanto quanto sabe dos restos dos homens e mulheres que habitam às margens. 

A cada um de nós, ela desvela com seu olhar salobre 
e a loucura de quem pode guardar pontes, 

sem nunca ter que atravessá-las.  

19 maio 2016

Crônicas Cotidianas: Um olhar sobre João


João é jovem.
Fica durante horas sentado nos batentes das portas de bares e mercadinhos.

As pessoas já se acostumaram.
É o João Atrasado, dizem.

A todos nós, ele vê passar.
A todo nós, ele olha, como que filtrando-nos.

Não é fácil enfrentar a mirada silenciosa de João Atrasado.

Mais do que nos filtrar e ele nos frita

e nos devora em seu atraso.





06 abril 2016

Notícias


já não infesto de cães e caos
meu recôncavo

nesses dias
festo-me 

e

fausto-me
feito flor de jaqueira

forte cor amanhecida

já não impeço-me
de acontecer

12 março 2016

Das quedas





                         a lágrima desce nua pelo rosto:
                         resta-se presa na curva do queixo

                         queixa-se, como se de carne fosse,
                         como se foice ou faca lhe cortasse

                         o corpo frágil.

                         como se nada mais restasse do olho:
                         a antiga morada de antes da queda.

                         no fim da face, a lagrima esfacela-se
                         inútil e bela, feito um suicídio.




Ilustração: 
Leigh on a Green Sofa - Lucien Freud

27 fevereiro 2016

Poço de fogo



ainda que fardo
é preciso arder

consumir-se 
poço de fogo

escandir-se

até que faltem
as misérias
os dentes

e sobrem 
os dentros
o córtex

e as cinzas 
do esforço


Ilustração: Yves Klein, 
Peinture de feu, sans titre, 1961. 
Carton brulé sur panneau.. 

18 janeiro 2016

O coreto



Dentro do Coreto de São Félix
Há dois fantasmas.
Eles choram porque as luzes
estão sempre acesas.
Não há escuridões para os fantasmas de São Félix.
Eles infernam-se eternamente iluminados

07 dezembro 2015

A felicidade de Seu Pedro

É dia sete de dezembro.
Seu Pedro veste uma roupa qualquer e desce a longa ladeira da rua Varis-Trada até o Banco do Brasil para pegar sua aposentadoria.

Tem 70 anos e nunca deixou de usar bico.

Chupeta, como dizia sua finada mãe, que morreu com o desgosto de ver o filho usando, dia e noite, o artefato infantil

Nunca fiz mal a ninguém, trabalhei como um jegue, não casei, não tive filho, mulher há muito não tenho, a única felicidade que me permiti foi usar bico, se defende seu Pedro.

No começo, escondia mais.
Agora, sabe que não lhe restam tantos anos. Vai ao banco, ao supermercado, ao posto de saúde, à prefeitura sempre com seu bico branco bem encaixado na boca.

Em alguns percebe o constrangimento, o susto, aquele comum estranhamento de gente infeliz.
A cada um deles retribui com um escancarado sorriso por trás do bico.


29 novembro 2015

A leitora



É manhã na rodoviária de São Félix.
Ela põe seu vestido amarelo-sol e vai até lá ler a mão dos chegandos e dos indos.

Alguns olham para ela com cara de gado assustado.

Só por que é cigana e muda não pode ler mãos?
Pois saiba que a sua quiromancia prescinde de palavras.

Saiba também que ela gesticula o futuro. É o que basta para mudar um destino.




Ilustração: Antoine Martinez




16 novembro 2015

A espera.

O rio Paraguassu não lhe enche os olhos. Ela está preenchida pela espera.
Pede uma cerveja e dois copos, para disfarçar a raiva.

Olha os turistas:
gente estúpida demais nessa cidade, coisa estranha, esse povo vem pra cá pra ver casa velha e ficar na beira desse rio.

Ela não é estúpida. Escreve no celular: agora não precisa mais vir.
Atravessa a ponte e vai dançar no Flor de Lins.

Lá não tem espera nem disfarce.


03 novembro 2015

Nos trilhos


Ele, um halterofilista tardio, com ralos cabelos cacheados, num louro talvez falso, talvez apenas gasto pelo tempo.
Ela, baixa, ancuda, pernas e barriga de fora. Sente calor e tem o corpo desenhado pelo suor.

E namoram atrás da velha estação ferroviária. Adolescem-se em beijos, afagos.

Ele, sentado, sem camisa, expondo o grande peito liso.
Ela, deitada em seu colo, vendo a metade daquele homem debaixo pra cima.

São corpos simétricos na tarde de sábado.

E beijam-se, ternos e agudos.

E riem da possante inveja dos passantes que não amam.

29 outubro 2015

Sabor

É manhã de uma quinta-feira qualquer na Praça Carlos Gomes.
Ela veste-se de azul.
O vestido cobre as pernas mas não o colo, nem os braços. O rosto sério investiga os passantes.

Fuma.

Lembra-se que lhe ensinaram a elegância do fumar.
As pernas cruzadas, a espinha ereta, a mão à altura do rosto, os dedos médio e indicador segurando o cigarro, levado lentamente à boca.

Traga a fumaça, deixa-a alguns instantes dentro do pulmão.

Solta a fumaça.

É seu jeito de dar algum sabor a essa manhã insossa.

15 outubro 2015

Beirais

Andorinhas achegam-se a seus ninhos nos beirais da casa.
Os demais pássaros também estão ao derredor.
Estão felizes, pois uma ponta de sol apontou na manhã.

A cada rasante sobre a casa
cabe o verso, a sílaba, a certeza:
a primavera é uma verdade pronta nos olhos dos pássaros.


13 outubro 2015

Rotina

Na televisão, amados impossíveis sofrem seus desafortunamentos.
Fora da televisão, a vida possível segue sob a chuva e declama-se ora pueril, ora fêmea trágica.

Entre a televisão e a vida o poeta deita-se ao lado de cachorros e gatos que dormem alheios.

O poeta vasculha-se enquanto ouve um diálogo açucarado, um carro velho gritando seu gás carbônico, ou a poesia escapulindo-se para dentro do sono dos bichos.

28 setembro 2015

a cegueira


(um texto fantasmo-cortaziano)

dizem que chove no sul e os eclipses lunares não podem ser vistos.

se isso for verdade, é uma cegueira trágica a que se abate sobre as gentes do sul, pois eles não podem ver a cegueira temporária da lua.

parece que eles choram enquanto as nuvens noturnas vertem suas águas, mas isso ninguém diz. 

imagina-se, apenas.







15 setembro 2015

Um chão sob os pés

E caminha na lentidão exigida pelo corpo, os braços meio abertos, arqueados para o alto, nunca pude abaixar meus braços, diz quase entre lágrimas. 

E me pede para ajudá-la a atravessar a rua, tenho medo, mesmo tendo o farol, me diz. 

E esperamos o sinal abrir, eu na expectativa de ser um farol verde capaz de permitir o avanço. Vejo-me tão mais alto, tão mais normal, tão dentro dos espectros. 

E ela fantasma meu corpo são, meu corpo caminhado. 

E o sinal abre, eu lento os passos para acompanhá-la naqueles 23 metros de pista, ela afunda-se sobre o asfalto, segue segura ao meu lado, eu desnivelo-me, asfalto-me naquela rota que não é minha. Estamos chegando.

E os carros, os prédios, os barulhos asfixiam nosso encontro. Tonto me despeço. 

E ela agradece olhando vazios enquanto me olha. 

 



 

02 setembro 2015

A não rasgadura

não rasgue seus cupins
suas carnes nobres

não enfeite seus açougues
com culpas passadiças

não enfrente a vida o soco a fome
a fera que lhe rói os cortes
as antigas cicatrizes
o couropele que lhe cobre

sinta-se saudável
vegetariano

boi feliz nos campos do Senhor
nos pastos da economia
da política

não rasgue seus cupins

minta
paste

viva




11 agosto 2015

Desmantelo

Verde demais nos olhos.

Talvez seja preciso ver mais cinzas compondo as distâncias, 
ou aqueles azuis-claro da infância à beira do rio.
Talvez seja preciso rir das memórias, das escaras e escadas deixadas pelo caminho. 

Não mais tempo de azares, de cipós entrelaçados nas figueiras, nos espinheiros.

Tempo sim de carnar o corpo seco da idade. 
Refestelá-lo em festas e frestas acontecidas no antes de agora.

Agora pergunto-me fuga, faca, fogo, numa aliteração qualquer.

Não respondo.

A falta de respostas é mais que silêncio: é o homem que sou.

É o desmantelo,


17 julho 2015

Sexta nº 2


no ônibus, na BR 101, entre Cruz das Almas e Feira de Santana, ela chega: bom dia amigo, segura isso e isso aqui também, e me passa a bolsa e outra sacola de plástico, e senta-se, bêbada, troncha, e começa a falar desconexos, e abre a bolsa e mostra um livro de colorir infantil, pincel, tinta, esse eu comprei par minha neta, será que ela vai gostar? inibido, tento me desfazer dos presentes alheios, ela insiste que eu segure, abre novamente a bolsa, olha, pega esse aqui também, abre aí pra nós ver. me passa umas revistas pornográficas, ri despudorada, pergunto se ela vai dar aquilo para a neta também, ela diz que não, me força a abrir, inibido, abro a revista, lembro da adolescência, das revistas encontradas na beira da BR 101 a milhares de quilômetros dali, vejo as fotonovelas, fico rindo por dentro, inibido, peço para que ela guarde. me mostra o celular, não consegue acessar as fotos da família, vou ver minha mãe em Rui Barbosa, saí de Salvador, to a três dias na estrada, e mostra o dinheiro no sutiã, digo pra ter cuidado, podem roubar, não ligo, já roubei mesmo, ele me bateu, juntei o dinheiro e fugi, saudade da minha filha, tenho um filho também, meu pai morreu, e chora, e ri e vai ao banheiro, e volta e tenta me mostrar as coisas no celular, as unhas estão feias, né?
e tenta narrar sua história, inibido escuto, finjo estar cansado, mas agonia-me sorriso triste e amarelado, a voz alta, a melancolia candente, olha a janela, admira-se de que está tudo verde, mostra mais uma vez o dinheiro, ri, chora, fala de novo da mãe, diz que vai ficar em Feira de Santana, dormir na rua até que venha o ônibus, perdi meu pai, saudade da minha filha, minha mãe me chamou, mas não quero ficar lá com ela, e abre a bolsa e mostra mais uma vez a revista pornográfica, pede para que eu fique com a revista, inibido digo que não, fala da outra neta, que ficará sem presente, fala da mãe, abandonada, não sei pra onde vou, as unhas, meu cabelo também tá feio, sou feia, né? inibido, vou disfarçando, amenizando, vendo a paisagem, ela bêbada, troncha, segue sua ladainha, em Feira de Santana, sai rapidamente do ônibus, cambaleante, perde-se na multidão presente na rodoviária, enquanto eu me encontro mais uma vez sóbrio, incapaz de pertencer às agruras do mundo.



Ilustração: Vakho Kakulia

18 junho 2015

Olhares sobre o agora

Crônica publicada em 17/06/2015 –  no Jornal A Notícia

Podemos olhar de tantas formas o nosso tempo de agora. Qual olhar vamos escolher? Qual posicionamento vamos ter diante desse mundo completamente mutável, líquido, descentrado. Falo por mim, cronista periférico que sou. Eu poderia lamentar a onda conservadora que assola a política e a religião. Poderia temer pelo futuro que me espera se essa gente deputada continuar com seus gritos estridentes, seus pais-nossos, seu apego ao discurso fácil e raso do imediatismo vingativo. Poderia temer ainda mais se esse discurso ganhar cada vez mais força. Essa gente nunca gostou dos escritores, dos artistas, nunca gostou de quem lhes expõe as fraquezas éticas. No entanto, apesar dos sustos que tal onda anda dando, ainda temos vozes bem mais resistentes, como a do Padre Julio Lancellotti que se ergue do seu dia a dia entre moradores de rua de São Paulo para reafirmar quem realmente é o Cristo. Temos ainda a voz de Eliane Brum, que se ergue do meio de um jornalismo, muitas vezes, reticente, para dizer coisas, às vezes, proibidas nas redações. São vozes e olhares de resistência e é através deles que vou olhar o nosso tempo de agora. Podemos pensar no racismo embutido em milhares de comentários nas reportagens sobre os imigrantes haitianos, assim como podemos pensar nas mensagens nazistas encontradas nas portas de banheiro das universidades e lamentar mais uma vez que nada mudou, que a falta de ética dos preconceituosos continua infringindo suas agudezas sobre aqueles que não lhes agradam. No entanto, o caminho é tortuoso, mas é para frente. O que antes era mais silêncio e invisibilidade agora é mais grito e resistência. Ainda matam muitos por sua cor, sua sexualidade, seu gênero, no entanto, cada vez mais, o nosso tempo de agora pede resistência, pede esperança. Apesar dos naufrágios com imigrantes ilegais, dos estupros em nome da religião, da aparente vitória do ódio, os afetos éticos e empáticos permanecem resistindo, sobrevivendo, e são eles que fazem o mundo um lugar possível. São eles a flor que insiste em nascer no meio do asfalto, que insiste em contradizer os que insistem em manter o mundo um lugar inviável.

Rubens da Cunha

03 junho 2015

O vazio impossível

O vazio impossível

E lá vem o vazio de novo. Poço sem água. Melhor, lá vem a aparência do vazio, pois ele é sempre uma decepção, um vácuo ilusório, porque nunca se está vazio completamente. Há sempre um preenchimento, mesmo que invisível, mesmo que intangível. Pode ser uma saudade, uma tristeza, uma lembrança remota, uma alegriazinha que permaneceu incrustada na pele. Pode ser um som da infância, um cheiro, um desejo, uma promessa que ainda não se cumpriu, pode ser qualquer agente motivador do passado, presente ou futuro. De maneira geral somos sempre preenchedores de vazio: a desilusão amorosa é ocupada por um novo amor, a derrota é ocupada pela esperança, a decepção é ocupada pelo ódio ou pelo perdão, a morte é ocupada pela dor, depois luto, depois saudade, depois esquecimento. E os vazios vãos sempre surgindo, pululando, vão sempre minando nossa sensação de completude, no entanto é esse trabalho de preencher os vazios que nos faz permanecer vivos. Na verdade, somos impossíveis ao vazio. Ele é uma presença, por certo, mas jamais consegue ser uma presença total. E os suicidas? me perguntarão, não seriam eles os que encontraram o vazio completo? Talvez. Mas acredito mais na ideia de que para eles não se tratou exatamente de vazio, mas de preenchimento, de não haver mais espaço de respiro, de vasão. Suicidas não me parecem vazios, mas cheios, repletos. É como se fossemos um vaso e que colocamos pedras, parece estar cheio, mas ainda pode-se colocar areia entre as pedras, parece estar mais cheio ainda, mas ainda é possível colocar água, tudo na tentativa de preencher os vazios que resistem. Suicidas quebraram o vaso. Talvez quem encontre o vazio total sejam as vítimas do mal de Alzheimer. O olhar perdido, no lugar da memória um buraco, a falta de percepção de si e dos outros. É o esquecimento como uma solidez, uma pedra que se disfarça de oquidão. Mas isso é uma doença, um acontecimento biológico. Se não formos atingidos por esse acontecimento e também se não quebrarmos o vaso que somos, o vazio será sempre uma ilusão de vazio. Por isso é preciso aprender a conviver com ele, jogar seu jogo e, à medida do possível, desrespeitar suas regras, desmacará-lo como a farsa que é.


27 maio 2015

A praça de leitura assassinada

Assassinaram uma praça de leitura. Foi ali, na Reta, em São Francisco do Sul. Eu a conheci quando estive na escola. Ela foi uma praça construída pelo esforço de alguns educadores e alunos, que dentro das limitações, alargaram a criatividade e construíram um delicado espaço de leitura e aprendizado. Na praça assassinada havia também uma pequena horta comunitária. Os bancos eram feitos de pneu chumbado. A estética da praça foi pensada para remeter ao universo dos caminhoneiros, atividade predominante na região. Repito: essa singela praça de leitura foi assassinada. Homens com trator chegaram à escola, numa tarde qualquer, terraplanaram o pátio. Onde havia uma praça de leitura, ficou um vazio analfabeto. Os assassinos da praça, esses homens e mulheres do poder, disseram que ela estava incomodando, que ela era uma ameaça por causa do surto de dengue, que ela estava abandonada, por isso foi melhor matá-la. Cinicamente, eles prometeram outra praça no lugar, mas uma praça mais adequada aos seus modelos de educação: uma praça fechada, com cercas, alambrados, toda cimentada, uma praça bem neoliberal e não mais essa praça feia, feita à mão, cheia de pneus que remetem a “pobreza” da região. O fato é que os homens e mulheres do poder assassinaram a praça pobre da escola. Não pensaram em reformá-la, não pensaram em investir nela como espaço possível de educação e cidadania, não pensaram em fazer dela um modelo transformador, não pensaram em fazer daquele breve espaço no meio da escola num amplo espaço de liberdade, de consciência humanitária. Não, os responsáveis pela escola só pensaram em assassinar a praça de leitura. A analogia é óbvia: a praça de leitura assassinada são todos os deixados de lado, os excluídos, os assassinados pela indiferença, pelo preconceito, pela mesquinharia dos homens e mulheres do poder. A eles não é dado o direito de existência, melhor, eles só podem existir se forem invisíveis, se não incomodarem o andamento dos trabalhos. E, convenhamos, uma praça de leitura é um incômodo, um percalço para essa gente que não gosta leitura e de toda a força, liberdade e vida que ela traz. Uma praça de leitura foi assassinada. Definitivamente, é tempo de luto e de luta.

13 maio 2015

Quarto Elemento: água

Crônica publicada no Jornal A Notícia em 13/05/2015

Volúpia. Pedaço líquido de alma. A água nos permeia. Transita vasta em nos corpos vivos. Sangue, suor, seiva, mijo e demais liquescências. A água se faz escorreita. Concentrada, ela é o oceano, impossível à morte da sede. Menor, ela é um rio, deslizante, ofídica, ela perpassa planaltos, planícies, montanhas, cidades. Presa em si mesma, a água é um lago, uma lagoa, que espelha céu e inferno enquanto evapora-se, para depois chover em outro lugar. Água, cujo carinho é chuva, esse voo sem paraquedas, esse acontecimento que umidifica, rega, abastece, enche de verde a morada dos vivos. Água: poço, poça, pedaço concentrado de vida. Olho d´água, breve ruptura que se espalha terra acima. No entanto, abaixo, os lençóis freáticos, esses mares subterrâneos do planeta. Água: metamorfose. Capaz de ser sólida, liquida, vaporosa. Água capaz de manter os corpos longe da putrefação, capaz de afundar navios titânicos. Água capaz de embranquecer os polos da terra, capaz de disfarçar os ursos polares. Água sólida, cujo nome é Alasca, Groenlândia, Antártica, cujo nome também é iglu, essa casa de gelo dos esquimós. Água capaz de preencher cada espaço vazio, de romper cada barreira, de infiltrar-se fresta a dentro, montanha abaixo, até engolfar-se no grande mar. Água gasosa, vapor, voo, invisível pertinência que nos rodeia. Água: ar, até que se canse, até que se modele em garoa, chuva, líquida queda, até que encontre o frio, a dureza aguda do gelo. Água, corpo de mudança, contínuo movimento, dança. Copo, vaso, cano, jarra, garrafa, prisões inventadas para a água. Ela se quer livre, limpa, insípida, incolor e inodora, como ensinam nos colégios. Até quando a água será um desperdício? Até quando a água será condenada a ser esgoto dos homens, se a natureza a condenou a ser cachoeira, chuva, tempestade, rio, mar, oceano e demais formas perfeitas? Até quando a água resistirá sem se tornar um ácido, um veneno? A vingança da água parece não tardar, e por certo não falhará. Se o mal não é o contrário do bem, mas a ausência do bem, aos poucos, saberemos todos, culpados e inocentes, que a falta da água será muito mais do que a sede.
Rubens da Cunha

06 maio 2015

Terceiro Elemento: Fogo

Crônica publicada no Jornal A Notícia em 06/05/2015 

 “Toda combustão acompanhada de desenvolvimento de luz, calor e, geralmente, de chamas”. Assim se estabelece a primeira das definições de fogo nos dicionários. Que outra coisa pode gerar luz, calor e chamas? Que outra coisa se presta tão prontamente a ser metáfora para a paixão, o amor descomedido ou o ódio, ou a fúria? Fogo é febre. É fome que de tudo se alimenta: madeira, plástico, ferro, carne, alma e o mais que se lhe apresenta. Fogo: parceiro quando sob controle, adestrado pelos fogões, candeeiros, lampiões, ou até mesmo no aparente caos das fogueiras festivas. O fogo assim é um tigre enjaulado, melhor, é como aqueles tigres do Zoológico Lujan, estão lá, mas não estão lá. Assim é fogo dominado por mãos humanas: fundamental para a sobrevivência, mas é uma fera enjaulada, qualquer desatenção ela pode lhe atacar, lhe arrancar um pedaço do corpo, da casa, da vida. Não por acaso, um dos sonhos das crianças é ser bombeiro, esta profissão que ataca, controla, e mata o fogo. Não por acaso bombeiros são heróis, sujeitos entregues a árdua batalha de vencer labaredas, de vencer esse símbolo do inferno. Fogo: Jano. Dois lados, se ele aquece, cozinha, ilumina, ele também queima, destrói, inferniza eternamente os pecadores. O fogo só é permitido ao olhar e ao escutar, nossos sentidos da distância. Tato, paladar lhe são completamente proibidos. Jamais teremos o fogo nas mãos, jamais saberemos qual é o gosto do fogo. Sempre há nos queimados as fortes cicatrizes dessa proibição. Quando ao olfato, também não sabemos qual é o cheiro do fogo, pois o que nos chega é o cheiro daquilo que o fogo está comendo. O cheiro do fogo em si mesmo não existe. Resta-nos apenas ver, pois até mesmo o ouvir é mais sobre os gritos do que está sendo queimado, do que do fogo propriamente dito. Vemos então, à distância, uma pequena gota amarela, que pode se transformar numa parede de chamas, num alaranjado intransponível, ardoroso, esfomeado. Vemos o fogo esplendoroso consumir-se a si mesmo, até virar brasa, esta última tentativa de resistência ígnea, e depois carvão, cinza, resto. Mas ele acaba sempre temporariamente. Em breve renascerá, seja sob o controle das mãos humanas, seja sob o descontrole dos acidentes ou da natureza. 

 Rubens da Cunha

04 novembro 2014

Meu livro infantil "Crônica de Gatos" anda por aí, sendo lido pelos alunos, e aos poucos vou recebendo retornos. O que me deixa substancialmente feliz e com vontades de encarar outra vez a escrita de literatura infantil.

08 junho 2014

colorau de jardim

colorau














só depois de grande é que soube
do outro nome: urucum

não gosta
a avó lhe ensinou que era colorau e colorau ficou

colhia os frutos para sacrificá-los

eram frágeis:
a vermelha inocência
sangrava entre os dedos

sempre soube:
tinha com os colorais,
a vontade macia do esmagamento.

04 junho 2014

Quase ainda

http://www.artmajeur.com/en/art-gallery/maxemile/23963/promenade-dans-la-neige/6658357

p/ Alesie

Certa vez eu a vi  em Copacabana. Estávamos os dois longe de casa.

Éramos crianças, crias mesmo desse deus que faz saudades.

Eu soube depois que o seu pai andou pelas ruas onde cresci.
Talvez ele tivesse estacionado um velho aero willis ao lado do velho dkw vemaguete de meu pai, na Rua Ministro Calógeras.

Talvez nós fôssemos tão parecidos e necessários à solidão quanto somos agora.

Depois nunca mais a vi, mas continuo olhando cães,  tatuagens, gargalhadas,
além das dez lágrimas que me caem todos os dias,

continuo achando que o relance vivido naquele dia no Rio de Janeiro se repetirá,
como se repetem as menstruações, as topadas, as fremências alegres do corpo.







03 junho 2014

tinha aqueles olhos:
nadavam absortos
soltos e distantes
como convém ao medo tanto dos perdidos

tinha aqueles ossos:
cantavam absurdos
tardos e impotentes
como devém ao peso pouco dos contidos


tomie ohtake > pinturas cegas

















(mais não tinha
que o mais é fraqueza e esconjuro)

31 maio 2014

morte

esqueceu
ou dormiu
Bulbo - Henrique Oliveira

e a palavra
se acordou
sono adentro

feito um feto
que sabe
dos abortos
involuntários

a palavra
escorregou
útero abaixo
num fluxo
de sangue

e sonho







29 maio 2014

os presos no retrato



Pareciam assustados. Estavam - para sempre - presos num estranho retrato pintado à mão. 

Eram onze. Sóbrios demais para quem viveu num passado em constante desafago.

Havia mais uma, mas ela chegou atrasada para o retrato. Ficou de fora feito nuvem que chega depois da chuva. Feito peixe que escapa da tarrafa e vê seus irmãos serem sequestrados do mar. 

A última deles, talvez se chamasse Inácia ou Luciana, ficou para sempre presa fora da moldura. 






28 maio 2014

Para Simone Weil




fluxo e fé
nesse inverno falho

falo dos anversos
das contradições de simone

 a weil,

a velha simone
que despejou seus gritos em mim
durante toda a tarde

a veia simone
cujo sono pouco vinha
suja das poeiras do mundo

tão maior do que eu
a vela simone
em seu cárcere

em suas cócegas diárias no infinito.

06 setembro 2013

é tarde

lá fora, homens britam meus ouvidos
agitam seus corpos de pedra e fala

aqui, silêncios
breves pedaços de canções e piadas
alguma dor na espinha,
ou no espinhaço,
conforme o dizer da avó

lá fora, a tarde é uma fêmea atrasada
aqui, o homem que me tornei
sangra e salga memórias

traduz bestagens
chora um pouco
vulgariza-se

em suma,
talvez durma, talvez suma

13 maio 2013


são voos circulares por sobre a carniça: a beleza é maior à distância

por quantas vezes terei que voltar à casa?
quantos quilômetros terei que voar até que se me impeçam as asas?
até que eu saiba os limites desse abismo-urubu que me sedimenta?

pouca altura pouco me interessa

ser pássaro de voos altos é nobreza que resta a esse corpo sem boas-novas
corpo que é apenas o estômago 
e mais alguns órgãos proparoxítonos

que se esvaem dia-a-dia





29 janeiro 2013

sangro e sambo sobre o concreto áspero
trinco-me, mas não desisto

 sei o que é esmerilhar-me entre um e outro medo
 não quero mais saber de levezas de peles adornadas em cio

 só confio no silêncio imaturo
 daquilo que não sabe esconder-me

27 novembro 2012

16 outubro 2012

a tarde


Para Soraia Salomão

lá fora os anus-brancos passeiam
sabem dos fios, do ocre da vida

dos outros pássaros menores
que transitam entre o trânsito

aqui, o sangue segue seus dentros
sabe das veias e artérias
velhas escoriações do tempo

aqui, o poeta acusa-se
em antro e preguiça

escamoteia-se enquanto foge para
os buracos da tarde

anus e poetas são perturbações mínimas
nos fios de alta-voltagem

são fragilidades que se esmiúçam
enquanto voam

13 junho 2012




palavra, tua caixa de ressonância já não sonha tanto
por que?
por que sei dos teus clichês dentro daquela cuia?
aquela feita com catuto

palavra, por que nomeasses aquela falsa abóbora, aquela falsa melancia
com nome tão estranho?
por que te colocasses lá dentro e não aqui,
nos meus catutos de baixo e de cima?

palavra, minha irmã H já anda me assombrando
porco poeta que não me sei
corpo oco que não me tem

e nada dos teus reverbérios, aqueles que me faziam gozar atrás das árvores
lembra palavra, quando eu engolia tudo para não contar à mãe, à irmã, ao fantasma do pai

era tempo bom
quando tu não te escondias no catuto

mas sempre aqui, no estômago,
quando tu eras enzimada em mim

perdoa-me a loucura, a inutilidade
a falta de tato, mas nessa hora

o vômito é a tática do silêncio

Adeus, palavra...





20 abril 2012




todo dia o cotidiano atravessa o aparelho digestivo
estreito túnel que vai da boca ao fim

todo dia a mesma minhoca nos esfomeia
nos esfaqueia com seus contatos de metal

se por fora somos tato 
por dentro somos um cinza gorduroso

difícil de lavar

somos um curral para as tripas
curra para as ideias de alturas 

brancuras

ressurreições


A carne do passado é amarela transparência.
Repousa entre rusgas, coices e outros espinhos.

É uma carne incorpórea
- não morta -
pois que se abrasa na memória, na construção diária do ninho.

A carne do passado é escassa e por isso ouro,
fino ornamento do desejo no centro cercado de escuros.

A carne do passado reluz, avessa ao esquecimento.

Sabe que em sua pele sempre habitarão pássaros:
- os longos pássaros do futuro -

23 fevereiro 2012

a pedra abstrata

sobre o peito uma pedra abstrata
ele trata a questão como se fosse penugem de dor

o peito abstraindo-se
cozinhando remorso em areia
ele campeia seus músculos, ossos, nervos na busca de algo que lhe faça homem

não esse homem que todos conhecem

outro
mais capaz de acelerar a concretude de fazer os gritos necessários

um homem totem de carne
sem a pedra, sem o caos habitual que definha seu futuro

um homem desnudo
desmascarado


mas a pedra abstrata não abstrai-se
continua sem trégua sobre o peito

as saídas apontadas sonharam-se vãs

o que tem é falta de ar
falta de olhar e micoses nas dobras

e a pedra
a pedra que cresce a cada dia
e que já esmaga o estômago e a boca.

07 fevereiro 2012

O reparador

Amor novo. Ele mentiu-se reparador de tudo.

Ela, claro, aproveitou:

lâmpadas, chuveiros, pias, bacios de banheiro, portas, janelas e paredes.

Ele, no começo, não reclamava, pois ela sempre o amaciava antes com um amor de coxas, uma boca mais atenta, um gemido mais dentro. Reparou a casa da sogra, da madrasta, da tia com parkinson, da vizinha virgem e de quem mais ela pediu.

Um dia ele disse que estava cansado, que não queria atravessar a cidade para reparar a casa da prima em terceiro grau.

Ela, claro, amuou. Salgou demais a comida, manchou sua melhor camisa, negou-lhe os gemidos de que tanto gostava.

Por fim, ele atravessou a cidade para reparar as coisas da prima. Não voltou mais.

Eulália, a prima em terceiro grau de seu antigo amor, tinha artimanhas bem mais intensas e não lhe cobrava pelos serviços. Dizia que homem seu não iria fazer coisas inúteis.

Até onde se sabe continuam se amando sob as goteiras.


30 janeiro 2012


hoje eu vi urubus atacando um cão morto
era a fome que eu tinha quando jovem

dentro do esôfago um bolo de desespero e saliva

havia dias em que tudo escapava
se esfarelava estômago a dentro

havia outros em que nada vazava

hoje
tudo é alimento

28 janeiro 2012

os dentes afiam-se na carne
fiam-se - brancos e imaturos -
nos esconjuros perdidos da memória

os dedos adentram a pélvis
entre um grito e outro
o ouro do gozo
afrontando
o parco pouso do pecado

a língua

- que conhece a parte de trás dos dentes e dos dedos-

também repasta-se nas
finas salivas debaixo




27 janeiro 2012

Tem pruridos, a casa
vergonhas de ausência

ela pouco se carnavalizou
tímida que é

A casa ainda está de pé
porque palavras pouco
sabem de seus corpos

palavras são crianças
entre a sodomia e
a santidade



16 novembro 2011

éguas e águas



nesse meu todo corpo
enfeixado de sodomas

sei dos alfinetes que deliram nos parques
sei das luzes baixas que acompanham bocas
sei dos vermífugos dados pela mãe

tá com bicha esse menino

se ela soubesse que a ordem ora pro nobis era outra

era outro o deus nas alturas
as hosanas nas alturas

sei ainda do escuro discurso
das éguas baias
da baixa água que circula o ventre

nada contém o destino
a mão fêmea e taciturna resvala-se reto a dentro
curva-se intestina e adormece solitária

imune a vermífugos, imune a coincidências e esperanças maternas

a mão fécula fezes fácil do destino não sonha:
insonha-se: acre e álacre




Imagem: Renné Magrite

06 outubro 2011

Eu vi o futuro

hoje
eu vi o futuro

de um lado um escritor com quatro dedos
lendo seu (meu) texto sem vírgulas e repleto de bucetas - (conchas, me disse depois um uruguaio)

de outro lado,
a pavonice dos teóricos e seus discursos pós ex pré
sufixados nas filosofias, arremessado que são (que somos) nos desvãos do discurso

hoje eu vi o futuro
de um lado a carnação caótica de um fodam-se vocês que me ouvem, eu sou escritor, eu posso vir aqui e falar as maiores inutilidades, eu posso não ter fundamento, eu tenho um texto e tenho só quatro dedos e sou publicitário e sou premiado e sou filho de escritor e sou um inferno nessa sua arrogância bem nascida

de outro
o riso amarelo dos que sabem ler, dos que sabem remexer avessos nos textos, mas jamais poderão ligar o foda-se sem que seus pares os condenem ao limbo da ingenuidade.

Nesse futuro que hoje eu vi, meu corpo era dois, duplo vórtice de um eu esmigalhado, proibido, calado à força.
Meu futuro transitou em 2 frentes, 2 pontes e eu no meio, no médio, sendo um e outro.

descendo
grau a grau
a escala dos inúteis

meu futuro visto hoje é uma nuvem tangente.

Choverá?
ou se dissipará ao primeiro sol mais forte?


27 setembro 2011

"Sim!
Eu estou tão cansado,
mas não pra dizer
que eu estou indo embora.

Talvez eu volte,
um dia eu volto"

diz uma canção da minha idade.

Venho às portas desta casa para cantá-la
velho que sou
já não entro na casa há mais de mês

ninguém deu por falta, ninguém lamuriou-se com as portas fechadas,
com o veio seco desse velho poeta

um dia eu volto,
com o casaco de general ou de doutor

com a pulhice plena dos achaques à vida, um dia eu volto,

Breton, Bataille, Blanchot - BBB institucional
o que seria de vocês se acaso tivessem uma casa virtual?
o que seria de suas velhices incômodas se raramente entrassem nela, não por que vazia, mas porque o vazio estaria em vocês, mais, c´est vous, nessa sua língua sem ser e estar.

Pronto, mais um passo dentro da casa, mais uma limpeza dos corredores, os cantos ainda sujos, um dia eu volto, um sábado qualquer eu volto para (me) limpar a casa.

08 agosto 2011

Poço. Pai

Poço. Pai.
(E demais memórias inventadas)

Ajoelhado,
à beira do poço,
o menino narcisa-se.

Mais do que um menino-narciso que ficava à beira do já feito, ele, junto com o pai, cavou seu próprio poço.
Lembra-se com candura: primeiro, o pai precisava saber por onde a água passava, qual o caminho secreto que ela tinha abaixo dos seus pés. Para isso chamava-se o Seu Lolo, que andava em todo o terreno com a forquilha na mão e ali, num canto qualquer do pasto, como que por milagre, aquele galho de árvore, fino, desprovido de qualquer força aparente, vergava-se em direção à terra, e dava a convicção ao Seu Lolo: pode cavar aqui.
– É de certeza, Seu Lolo? – O pai ainda duvidava, adulto. Ele não!
– Vamos cavar aqui, pai. – Não viu a forquilha quase sair da mão do Seu Lolo, tanta força fez para o chão. Tem água lá embaixo, sim.
O pai, quase bronqueado pela insistência do filho, por fim aceitava, e começavam a cavar.
Primeiro, a terra mole, escura, alimento para a grama do pasto, depois algo mais seco, arenoso. Seguiam cavando, cavando. A terra ia mudando. O fascínio ia crescendo à medida que encontravam folhas, gravetos, vestígios de tempos mais do que antigos.
– Já imaginou, pai, se a gente achasse um dinossauro?
– E lá isso existe? Nesse barro mole, tu só vai encontrar é folha morta mesmo.
E seguiam cavando. A umidade já aparecia na parede do poço, logo chegariam à água sagrada. Logo se confirmaria a ciência do Seu Lolo.
– Onde será que ele aprendeu a fazer, pai? Esse negócio de achar água assim, com a forquilha.
– Coisa dos antigamente, meu filho.
– Mas o senhor já tentou?
– Tem que ter o dom, ter o dom. Teu avô não tinha, eu não tenho, é bem capaz de tu também não ter.
E seguiam cavando. Ele um pouco mais triste, não ia ter o dom de achar água. Depois, um terreno argiloso. Esquecia um pouco do poço e ia ser escultor. A argila tornava-se barco, patos, cachorros, pessoas. Ria da feiúra de seus bonecos. Queria mesmo era cavar o poço, encontrar a água.
– Logo a gente chega no veio d’água, pode deixá!
E o pai cumpria o dito:
– Opa, chegamo!
Aos poucos, a água nascia, misturava-se ao barro, vinha subindo, suja, mas viva, dando razão à certeza do Seu Lolo.
– Amanhã tá cheio, aí a gente já pode ver se a água é boa mesmo.
Desde então, sempre vai ver o poço, ver se a água continuava presa e límpida espelhando-o viver.



Escrito num fim de verão, em 2008

30 julho 2011

Minhas mulheres

no corpo de minhas mulheres
um oco baixo me acontece
a milhares de anos e léguas

minhas mulheres são medusas
talvez até fossem éguas se me permitissem a rima

minhas mulheres são granfinas
suas orelhas permanecem virgens a insultos

se lhes digo putas ouvem dálias
se lhes digo cadelas ouvem mar
e olham-me com carinho, como se de carinho fossem feitas

minhas mulheres rarefeitas em miséria, em virilhas
novilhas cruciadas
carnadas para meu prazer de homem

tenho remorso por comer minhas mulheres
sem lhes temperar, sem dizer que tudo não será abandono

que o dia seguinte é um útero
um vórtice de carne e travesseiro

e que talvez suas orelhas virgens possam entender, atender a ligação

30 junho 2011

30 dias

30 cães e mães me corroeram
o esôfago: cartilagem acetinada que carrego dentro

são latidos e gemidos : meu filho meu dono meu tudo nao escape
não se perfume tanto no abandono

30 dias em que palavras foram doces amestrados
ametistas corroíras presas no jardim

30 estrangeiros estirparam meus ouvidos
e a falência de meus órgãos

sou um menino descampado
um príncipe pequeno
retificado na educação

e nos olhos ingênuos

30 maio 2011

a 3000 metros acima
cinzas sabem-se pássaros

a 3000 metros abaixo
um vulcão natimorto
atrasa-me o peito

a 3000 mil metros mais abaixo
Lúcifer goza rios de lava
e ri das passagens canceladas

18 maio 2011

A pressa

não direi que a pressa
é uma pedra

não sou Sísifo
embora pareça

a pressa me acontece
mais como a montanha:
subir e descer

a pressa é um disfarce
um silêncio em máscaras

que carrego feliz

a pressa me acontece
no lugar da perda

08 abril 2011

Pro Mittere

É longa a manhã para um homem cuja pele é promessa. É uma espécie de desvio, de rio atalho. Um atoleiro azul. Nos outonos é pior: a beleza clichê, "olha que lindo", dizem. E a manhã segue alongada pela tarde, pelo crepúsculo, pela noite imperativa das estrelas.




O homem é apenas um futuro, um arcabouço, um pro mittere que se desdobra infecundo entre a esperança e a ausência do milagre.





Ilustração: Goya

30 março 2011

El perro

I
a casa cercada por cachorros

por dentro
un perro se remorde

remorso ancestre

dos tempos em que
as quatro patas
sabiam a terra

sabiam os pelos da barriga,
do sexo, das costas.

II
a casa cerrada para os cachorros

à porta,
olham para o bípede
ladram ao traidor

el perro se ressente
senta-se no sofá
e escreve um poema elevado

homem que é

23 março 2011




a fera que me come as carnes

não tem feriado: tem fome

e tem fácil
meus pedaços nobres
a serem oferecidos às visitas

e meus miúdos
para o ensopado da segunda-feira



Ilustração: Lucian Freud

18 março 2011


439 vezes
a palavra vesga
agachou-se

acamou-se fêmea e foice

439 vezes
a palavra nesga tentou ser mais

não pode:
acalmou-se
mosca sobre a mesa

esperando a morte
vinda pela pazinha de plástico



Ilustração: Vangobot

08 março 2011

a testa do homem
é um texto de fugas

a testa do homem
testa todas as idades

permanente contexto

estrada e saída
entrada e vida

a testa do homem
é uma verdade óssea

16 fevereiro 2011

retorno
pródigo e filho
à terrapoema

retomo o perdão da palavra

ela é mãe e vaca
leite de todo jeito

remonto
as mulas que deixei
à beira do precipício

sei que estou
às vésperas de completar
a metade da vida

retorno
à casa de paragens

por mais que digam que não
um dia pode ser tarde demais

19 janeiro 2011

Porcelana

Eis que virei compositor, com direito a clipe e tudo.
Letra minha, música de Rico Vogel, o guitarrista da banda Lady Murphy

15 dezembro 2010

cinzas espinham o corpo
que frio fia-se sobre o outro

tempo dos avessos agora

a dor crespa da espera
e
a espera vesga do fim

logo ali o apocalipse
os quatro cavaleiros
e suas espadas festivas

logo ali um sol menor
mentindo-se verão

e a pele cada vez
mais branca

transparência
teu nome é o soco
que consigo pronunciar

22 novembro 2010

Dia 23/11 - Lançamento Crônica de Gatos


Reforçando o convite para o lançamento do livro "Crônica de Gatos", uma parceria minha como a ilustradora Regina Marcis

Livro: Crônicas de Gatos Local: Estação da Memória (antiga Estação Ferroviária) Rua Leite Ribeiro s/n Dia: 23 de Novembro de 2010 - a partir das 18:30h
Aguardo vocês lá

abraços
Rubens

31 outubro 2010

Clara Nunes - "À Flor da Pele" (Fantástico, 1978)

Meninas cantoras, por favor, aprendam como se faz...




ouçam, enquanto o poema não vem...

19 outubro 2010

na ausência da palavra, o corpo.




"escrever é o pensamento endereçado, enviado ao corpo - àquilo que o aparta, àquilo que o estranha" - Jean-Luc Nancy

Ilustração: Charlie Bell

15 setembro 2010

Crasso

0 corpo violentado no fogo
a cópula desdentada entre capins
os mastins catingando esteiras

a vida esfregando-se na morrinha cotidiana

o sol lá fora, dizem
azul lá fora, preconizam

aqui dentro os porcos chafurdam
fossem serpentes, fossem cavalos, rinocerontes
mas porcos e seu olhar vesgo
sua cambaleante banha e brancura

o sol lá fora, dizem
azul lá fora, preconizam

ouço as vozes
não tenho escolhas
só escolhos

levarei meus porcos à beira-mar

05 setembro 2010

Vittório

a nudez me deflora
meu pau em estado vegetativo desarma a pouca hombridade que me resta
o reumatismo evidencia a ruptura
os rompantes duros de antanho são memórias
histórias inaptas ao devir

tenho medo e silêncio
nesse domingo fragoso

tenho vísceras presas
no quarto de banho
tenho carregosos espasmos quando nu
sei de meu corpo desinchado
dos poros ocos
das pleuras e cardiopatias
desse retumbar por dentro
entre catingas: boca estômago intestinos bexiga pés sovaco

tudo exala a violência incolor da morte
porta de vidro para o invisível

23 agosto 2010

Crônica de Gatos


Aguarde...

Eu não sei muito bem pra que serve e nem como funciona, mas agora tô brincando de Twitter também. http://twitter.com/rubensdacunha Sigam-me os bons que todos seguirei também...

18 agosto 2010

ando tão audaz. tão andaluz que nem acredito. ando tão saído. tão saudável que as palavras saturnam-se para manterem-se vivas. ando preocupado com esses sois internos destruindo o mofo. aquela agoniaculpadesgraça que revestia meus tecidos epiteliais e que fazia em mim um inverno particular está primaverando-se.

será que serei um desses velhos excursionáveis?


11 agosto 2010

Caros:
eu e Marco Vasques estamos selecionando trabalhos para o primeiro número da revista de literatura e arte Osiris. A revista terá seção de poema, prosa, entrevista, ensaio, crítica, dossiê, artes plásticas, coleção de poesia e teatro. Quem quiser enviar material para o conselho editorial da revista pode remeter para vasques_marco@hotmail.com e rubensdacunha@gmail.com
Abraços
os editores
Rubens da Cunha
Marco Vasques