08 maio 2018
4 cenas em 4 instantes
16 dezembro 2017
Graça
Nenhum nada enxerga.
Graça desacredita e deixa-se ir
com as suas invisibilidades sobre os ombros
13 julho 2017
Tarde
tua geometria cava-me os flancos
e todas as dobradiças de meu corpo.
teu poente emoldurado reconta
- recôncavo que é -
as tardinhas nos quintais da infância:
quando as águas não eram Paraguaçu, mas Piraí.
quando o Sul era o mundo e este mundo aqui
nem sonho era.
06 julho 2017
garçárvore
30 junho 2017
Pedro tem as pernas a pélvis a cintura afundadas no Subaé.
Ele pouco sabe das cinzafezes que escorrem no rio.
Pouco faz nojo o lodo margeando seus baixos.
Tarrafeia.
A tarrafa afunda. Pedro arrasta-a para si. Ela vem prenhe de peixes.
A fé na pescaria nunca trai um homem que tarrafeia
como quem desenha círculos límpidos em água imunda.
13 fevereiro 2017
azuis puros
de ruínas irmãs e imundas
praias e presépios ao vento
feitos em doçuras dançantes
de carne e sombra
nesses azuis puros demais
.
.
Rubens da Cunha
Verão - Recôncavo - BA
cruzes
e soma
aslfato
sangue
atropelos
a indiferença dos acostamentos
28 novembro 2016
O profeta
Matias perdeu o olho esquerdo numa pescaria:
um anzol iscou a retina, rasgando-a.
Não houve jeito: foi-se o olho e a disfarçada sanidade.
Hoje, feito ciclope menor,
Matias passeia entre a Escadinha e o Caquende professando:
- todos terão os olhos pescados pelo Diabo, porque Deus é cego.
09 novembro 2016
CAME-SE
amantes camam-se
há um pé de gratidão
nesses corpos gozosos
se lá fora a fome temerosa
dita-se crua
aqui
nos dentros da casa
tudo dista-se lençol adentro
24 outubro 2016
Oração
Rosa espelha-se:
lenço na cabeça,
blusa florida,
saia arrastando-se no chão.
Rosa aviva-se em raiva e medo. Está pronta.
Nas ruas de Cachoeira, procura a casa-criatório de orações.
Encontra:
- disseram que aqui criam orações para expulsar maus vizinhos? quero 7, uma para cada dia da semana.
A atendente da loja de xerox tira 7 cópias, cobra R$ 1,40, dá orientações e avisa que se os vizinhos persistirem, Rosa pode voltar que o dinheiro será devolvido.
Não teve precisão.
Rosa agora é toda desavizinhada, como sempre sonhou, melhor, como sempre orou.
19 outubro 2016
Dizem que começou com uma pedra nos rins, depois outra na vesícula.
As pedras cresceram, rochas, rosas e graves.
Avançaram costela acima e romperam as costas.
'São asas', disseram os místicos, e caíram em êxtase diante da santa com asas de pedra e sangue.
'É um afloramento rochoso', disseram os geólogos, e começaram a estudar a composição interna da mulher, junto com nefrologistas.
Ela, por sua vez, carrega o peso das asas desajeitadas, "asas desanjadas" como prefere dizer.
E segue
compacta.
volumosa,
sem voo e sem afloramentos.
25 setembro 2016
Raiz dentro
Photographiée par G. Michelez
01 agosto 2016
Caixa de carne
lá fora
exigem minha voz
mas sou homem de recursos escassos
- boi sem escolhas -
sei pouco das coisas que emprenham
e estou quase mês sem soletrar a dor
por isso escamo feito peixe
feito caixa de carne triste
Ilustração: Rembrandt
01 julho 2016
Ultimo voo
15 junho 2016
O presente de Anilda
02 junho 2016
A guardadora da ponte
19 maio 2016
Crônicas Cotidianas: Um olhar sobre João
João é jovem.
Fica durante horas sentado nos batentes das portas de bares e mercadinhos.
As pessoas já se acostumaram.
É o João Atrasado, dizem.
A todo nós, ele olha, como que filtrando-nos.
Não é fácil enfrentar a mirada silenciosa de João Atrasado.
Mais do que nos filtrar e ele nos frita
e nos devora em seu atraso.
06 abril 2016
Notícias
já não infesto de cães e caos
meu recôncavo
nesses dias
festo-me
e
fausto-me
feito flor de jaqueira
forte cor amanhecida
já não impeço-me
de acontecer
12 março 2016
Das quedas
Ilustração:
Leigh on a Green Sofa - Lucien Freud
27 fevereiro 2016
Poço de fogo
18 janeiro 2016
O coreto
07 dezembro 2015
A felicidade de Seu Pedro
Seu Pedro veste uma roupa qualquer e desce a longa ladeira da rua Varis-Trada até o Banco do Brasil para pegar sua aposentadoria.
Tem 70 anos e nunca deixou de usar bico.
Chupeta, como dizia sua finada mãe, que morreu com o desgosto de ver o filho usando, dia e noite, o artefato infantil
Nunca fiz mal a ninguém, trabalhei como um jegue, não casei, não tive filho, mulher há muito não tenho, a única felicidade que me permiti foi usar bico, se defende seu Pedro.
No começo, escondia mais.
Agora, sabe que não lhe restam tantos anos. Vai ao banco, ao supermercado, ao posto de saúde, à prefeitura sempre com seu bico branco bem encaixado na boca.
Em alguns percebe o constrangimento, o susto, aquele comum estranhamento de gente infeliz.
A cada um deles retribui com um escancarado sorriso por trás do bico.
29 novembro 2015
A leitora
É manhã na rodoviária de São Félix.
Ela põe seu vestido amarelo-sol e vai até lá ler a mão dos chegandos e dos indos.
Alguns olham para ela com cara de gado assustado.
Só por que é cigana e muda não pode ler mãos?
Pois saiba que a sua quiromancia prescinde de palavras.
Saiba também que ela gesticula o futuro. É o que basta para mudar um destino.
16 novembro 2015
A espera.
Pede uma cerveja e dois copos, para disfarçar a raiva.
Olha os turistas:
gente estúpida demais nessa cidade, coisa estranha, esse povo vem pra cá pra ver casa velha e ficar na beira desse rio.
Ela não é estúpida. Escreve no celular: agora não precisa mais vir.
Atravessa a ponte e vai dançar no Flor de Lins.
Lá não tem espera nem disfarce.
03 novembro 2015
Nos trilhos
Ele, um halterofilista tardio, com ralos cabelos cacheados, num louro talvez falso, talvez apenas gasto pelo tempo.
Ela, baixa, ancuda, pernas e barriga de fora. Sente calor e tem o corpo desenhado pelo suor.
E namoram atrás da velha estação ferroviária. Adolescem-se em beijos, afagos.
Ele, sentado, sem camisa, expondo o grande peito liso.
Ela, deitada em seu colo, vendo a metade daquele homem debaixo pra cima.
São corpos simétricos na tarde de sábado.
E beijam-se, ternos e agudos.
E riem da possante inveja dos passantes que não amam.
29 outubro 2015
Sabor
Ela veste-se de azul.
O vestido cobre as pernas mas não o colo, nem os braços. O rosto sério investiga os passantes.
Fuma.
Lembra-se que lhe ensinaram a elegância do fumar.
As pernas cruzadas, a espinha ereta, a mão à altura do rosto, os dedos médio e indicador segurando o cigarro, levado lentamente à boca.
Traga a fumaça, deixa-a alguns instantes dentro do pulmão.
Solta a fumaça.
É seu jeito de dar algum sabor a essa manhã insossa.
15 outubro 2015
Beirais
Os demais pássaros também estão ao derredor.
Estão felizes, pois uma ponta de sol apontou na manhã.
A cada rasante sobre a casa
cabe o verso, a sílaba, a certeza:
a primavera é uma verdade pronta nos olhos dos pássaros.
13 outubro 2015
Rotina
28 setembro 2015
a cegueira
dizem que chove no sul e os eclipses lunares não podem ser vistos.
se isso for verdade, é uma cegueira trágica a que se abate sobre as gentes do sul, pois eles não podem ver a cegueira temporária da lua.
parece que eles choram enquanto as nuvens noturnas vertem suas águas, mas isso ninguém diz.
imagina-se, apenas.
15 setembro 2015
Um chão sob os pés
02 setembro 2015
A não rasgadura
suas carnes nobres
não enfeite seus açougues
com culpas passadiças
não enfrente a vida o soco a fome
a fera que lhe rói os cortes
as antigas cicatrizes
o couropele que lhe cobre
sinta-se saudável
vegetariano
boi feliz nos campos do Senhor
nos pastos da economia
da política
não rasgue seus cupins
minta
paste
viva
11 agosto 2015
Desmantelo
17 julho 2015
Sexta nº 2
no ônibus, na BR 101, entre Cruz das Almas e Feira de Santana, ela chega: bom dia amigo, segura isso e isso aqui também, e me passa a bolsa e outra sacola de plástico, e senta-se, bêbada, troncha, e começa a falar desconexos, e abre a bolsa e mostra um livro de colorir infantil, pincel, tinta, esse eu comprei par minha neta, será que ela vai gostar? inibido, tento me desfazer dos presentes alheios, ela insiste que eu segure, abre novamente a bolsa, olha, pega esse aqui também, abre aí pra nós ver. me passa umas revistas pornográficas, ri despudorada, pergunto se ela vai dar aquilo para a neta também, ela diz que não, me força a abrir, inibido, abro a revista, lembro da adolescência, das revistas encontradas na beira da BR 101 a milhares de quilômetros dali, vejo as fotonovelas, fico rindo por dentro, inibido, peço para que ela guarde. me mostra o celular, não consegue acessar as fotos da família, vou ver minha mãe em Rui Barbosa, saí de Salvador, to a três dias na estrada, e mostra o dinheiro no sutiã, digo pra ter cuidado, podem roubar, não ligo, já roubei mesmo, ele me bateu, juntei o dinheiro e fugi, saudade da minha filha, tenho um filho também, meu pai morreu, e chora, e ri e vai ao banheiro, e volta e tenta me mostrar as coisas no celular, as unhas estão feias, né?
e tenta narrar sua história, inibido escuto, finjo estar cansado, mas agonia-me sorriso triste e amarelado, a voz alta, a melancolia candente, olha a janela, admira-se de que está tudo verde, mostra mais uma vez o dinheiro, ri, chora, fala de novo da mãe, diz que vai ficar em Feira de Santana, dormir na rua até que venha o ônibus, perdi meu pai, saudade da minha filha, minha mãe me chamou, mas não quero ficar lá com ela, e abre a bolsa e mostra mais uma vez a revista pornográfica, pede para que eu fique com a revista, inibido digo que não, fala da outra neta, que ficará sem presente, fala da mãe, abandonada, não sei pra onde vou, as unhas, meu cabelo também tá feio, sou feia, né? inibido, vou disfarçando, amenizando, vendo a paisagem, ela bêbada, troncha, segue sua ladainha, em Feira de Santana, sai rapidamente do ônibus, cambaleante, perde-se na multidão presente na rodoviária, enquanto eu me encontro mais uma vez sóbrio, incapaz de pertencer às agruras do mundo.
18 junho 2015
Olhares sobre o agora
03 junho 2015
O vazio impossível
27 maio 2015
A praça de leitura assassinada
13 maio 2015
Quarto Elemento: água
06 maio 2015
Terceiro Elemento: Fogo
04 novembro 2014
08 junho 2014
colorau de jardim
colorau |
só depois de grande é que soube
do outro nome: urucum
não gosta
a avó lhe ensinou que era colorau e colorau ficou
colhia os frutos para sacrificá-los
eram frágeis:
a vermelha inocência
sangrava entre os dedos
sempre soube:
tinha com os colorais,
a vontade macia do esmagamento.
04 junho 2014
Quase ainda
http://www.artmajeur.com/en/art-gallery/maxemile/23963/promenade-dans-la-neige/6658357 |
Certa vez eu a vi em Copacabana. Estávamos os dois longe de casa.
Éramos crianças, crias mesmo desse deus que faz saudades.
Eu soube depois que o seu pai andou pelas ruas onde cresci.
Talvez ele tivesse estacionado um velho aero willis ao lado do velho dkw vemaguete de meu pai, na Rua Ministro Calógeras.
Talvez nós fôssemos tão parecidos e necessários à solidão quanto somos agora.
Depois nunca mais a vi, mas continuo olhando cães, tatuagens, gargalhadas,
além das dez lágrimas que me caem todos os dias,
continuo achando que o relance vivido naquele dia no Rio de Janeiro se repetirá,
como se repetem as menstruações, as topadas, as fremências alegres do corpo.
03 junho 2014
nadavam absortos
soltos e distantes
como convém ao medo tanto dos perdidos
tinha aqueles ossos:
cantavam absurdos
tardos e impotentes
como devém ao peso pouco dos contidos
tomie ohtake > pinturas cegas |
(mais não tinha
que o mais é fraqueza e esconjuro)
31 maio 2014
morte
ou dormiu
Bulbo - Henrique Oliveira |
e a palavra
se acordou
sono adentro
feito um feto
que sabe
dos abortos
involuntários
a palavra
escorregou
útero abaixo
num fluxo
de sangue
e sonho
29 maio 2014
os presos no retrato
28 maio 2014
Para Simone Weil
fluxo e fé
nesse inverno falho
falo dos anversos
das contradições de simone
a weil,
a velha simone
que despejou seus gritos em mim
durante toda a tarde
a veia simone
cujo sono pouco vinha
suja das poeiras do mundo
tão maior do que eu
a vela simone
em seu cárcere
em suas cócegas diárias no infinito.
06 setembro 2013
lá fora, homens britam meus ouvidos
agitam seus corpos de pedra e fala
aqui, silêncios
breves pedaços de canções e piadas
alguma dor na espinha,
ou no espinhaço,
conforme o dizer da avó
lá fora, a tarde é uma fêmea atrasada
aqui, o homem que me tornei
sangra e salga memórias
traduz bestagens
chora um pouco
vulgariza-se
em suma,
talvez durma, talvez suma
13 maio 2013
29 janeiro 2013
27 novembro 2012
16 outubro 2012
a tarde
lá fora os anus-brancos passeiam
sabem dos fios, do ocre da vida
dos outros pássaros menores
que transitam entre o trânsito
aqui, o sangue segue seus dentros
sabe das veias e artérias
velhas escoriações do tempo
aqui, o poeta acusa-se
em antro e preguiça
escamoteia-se enquanto foge para
os buracos da tarde
anus e poetas são perturbações mínimas
nos fios de alta-voltagem
são fragilidades que se esmiúçam
enquanto voam
13 junho 2012
palavra, tua caixa de ressonância já não sonha tanto
por que?
por que sei dos teus clichês dentro daquela cuia?
aquela feita com catuto
palavra, por que nomeasses aquela falsa abóbora, aquela falsa melancia
com nome tão estranho?
por que te colocasses lá dentro e não aqui,
nos meus catutos de baixo e de cima?
palavra, minha irmã H já anda me assombrando
porco poeta que não me sei
corpo oco que não me tem
e nada dos teus reverbérios, aqueles que me faziam gozar atrás das árvores
lembra palavra, quando eu engolia tudo para não contar à mãe, à irmã, ao fantasma do pai
era tempo bom
quando tu não te escondias no catuto
mas sempre aqui, no estômago,
quando tu eras enzimada em mim
perdoa-me a loucura, a inutilidade
a falta de tato, mas nessa hora
o vômito é a tática do silêncio
Adeus, palavra...
20 abril 2012
23 fevereiro 2012
a pedra abstrata
ele trata a questão como se fosse penugem de dor
o peito abstraindo-se
cozinhando remorso em areia
ele campeia seus músculos, ossos, nervos na busca de algo que lhe faça homem
não esse homem que todos conhecem
outro
mais capaz de acelerar a concretude de fazer os gritos necessários
um homem totem de carne
sem a pedra, sem o caos habitual que definha seu futuro
um homem desnudo
desmascarado
só
mas a pedra abstrata não abstrai-se
continua sem trégua sobre o peito
as saídas apontadas sonharam-se vãs
o que tem é falta de ar
falta de olhar e micoses nas dobras
e a pedra
a pedra que cresce a cada dia
e que já esmaga o estômago e a boca.
07 fevereiro 2012
O reparador
Amor novo. Ele mentiu-se reparador de tudo.
Ela, claro, aproveitou:
lâmpadas, chuveiros, pias, bacios de banheiro, portas, janelas e paredes.
Ele, no começo, não reclamava, pois ela sempre o amaciava antes com um amor de coxas, uma boca mais atenta, um gemido mais dentro. Reparou a casa da sogra, da madrasta, da tia com parkinson, da vizinha virgem e de quem mais ela pediu.
Um dia ele disse que estava cansado, que não queria atravessar a cidade para reparar a casa da prima em terceiro grau.
Ela, claro, amuou. Salgou demais a comida, manchou sua melhor camisa, negou-lhe os gemidos de que tanto gostava.
Por fim, ele atravessou a cidade para reparar as coisas da prima. Não voltou mais.
Eulália, a prima em terceiro grau de seu antigo amor, tinha artimanhas bem mais intensas e não lhe cobrava pelos serviços. Dizia que homem seu não iria fazer coisas inúteis.
Até onde se sabe continuam se amando sob as goteiras.
30 janeiro 2012
28 janeiro 2012
27 janeiro 2012
16 novembro 2011
éguas e águas
06 outubro 2011
Eu vi o futuro
27 setembro 2011
Eu estou tão cansado,
mas não pra dizer
que eu estou indo embora.
Talvez eu volte,
um dia eu volto"
diz uma canção da minha idade.
Venho às portas desta casa para cantá-la
velho que sou
já não entro na casa há mais de mês
ninguém deu por falta, ninguém lamuriou-se com as portas fechadas,
com o veio seco desse velho poeta
um dia eu volto,
com o casaco de general ou de doutor
com a pulhice plena dos achaques à vida, um dia eu volto,
Breton, Bataille, Blanchot - BBB institucional
o que seria de vocês se acaso tivessem uma casa virtual?
o que seria de suas velhices incômodas se raramente entrassem nela, não por que vazia, mas porque o vazio estaria em vocês, mais, c´est vous, nessa sua língua sem ser e estar.
Pronto, mais um passo dentro da casa, mais uma limpeza dos corredores, os cantos ainda sujos, um dia eu volto, um sábado qualquer eu volto para (me) limpar a casa.
08 agosto 2011
Poço. Pai
(E demais memórias inventadas)
Ajoelhado,
à beira do poço,
o menino narcisa-se.
Mais do que um menino-narciso que ficava à beira do já feito, ele, junto com o pai, cavou seu próprio poço.
Lembra-se com candura: primeiro, o pai precisava saber por onde a água passava, qual o caminho secreto que ela tinha abaixo dos seus pés. Para isso chamava-se o Seu Lolo, que andava em todo o terreno com a forquilha na mão e ali, num canto qualquer do pasto, como que por milagre, aquele galho de árvore, fino, desprovido de qualquer força aparente, vergava-se em direção à terra, e dava a convicção ao Seu Lolo: pode cavar aqui.
– É de certeza, Seu Lolo? – O pai ainda duvidava, adulto. Ele não!
– Vamos cavar aqui, pai. – Não viu a forquilha quase sair da mão do Seu Lolo, tanta força fez para o chão. Tem água lá embaixo, sim.
O pai, quase bronqueado pela insistência do filho, por fim aceitava, e começavam a cavar.
Primeiro, a terra mole, escura, alimento para a grama do pasto, depois algo mais seco, arenoso. Seguiam cavando, cavando. A terra ia mudando. O fascínio ia crescendo à medida que encontravam folhas, gravetos, vestígios de tempos mais do que antigos.
– Já imaginou, pai, se a gente achasse um dinossauro?
– E lá isso existe? Nesse barro mole, tu só vai encontrar é folha morta mesmo.
E seguiam cavando. A umidade já aparecia na parede do poço, logo chegariam à água sagrada. Logo se confirmaria a ciência do Seu Lolo.
– Onde será que ele aprendeu a fazer, pai? Esse negócio de achar água assim, com a forquilha.
– Coisa dos antigamente, meu filho.
– Mas o senhor já tentou?
– Tem que ter o dom, ter o dom. Teu avô não tinha, eu não tenho, é bem capaz de tu também não ter.
E seguiam cavando. Ele um pouco mais triste, não ia ter o dom de achar água. Depois, um terreno argiloso. Esquecia um pouco do poço e ia ser escultor. A argila tornava-se barco, patos, cachorros, pessoas. Ria da feiúra de seus bonecos. Queria mesmo era cavar o poço, encontrar a água.
– Logo a gente chega no veio d’água, pode deixá!
E o pai cumpria o dito:
– Opa, chegamo!
Aos poucos, a água nascia, misturava-se ao barro, vinha subindo, suja, mas viva, dando razão à certeza do Seu Lolo.
– Amanhã tá cheio, aí a gente já pode ver se a água é boa mesmo.
Desde então, sempre vai ver o poço, ver se a água continuava presa e límpida espelhando-o viver.
Escrito num fim de verão, em 2008
30 julho 2011
Minhas mulheres
um oco baixo me acontece
a milhares de anos e léguas
minhas mulheres são medusas
talvez até fossem éguas se me permitissem a rima
minhas mulheres são granfinas
suas orelhas permanecem virgens a insultos
se lhes digo putas ouvem dálias
se lhes digo cadelas ouvem mar
e olham-me com carinho, como se de carinho fossem feitas
minhas mulheres rarefeitas em miséria, em virilhas
novilhas cruciadas
carnadas para meu prazer de homem
tenho remorso por comer minhas mulheres
sem lhes temperar, sem dizer que tudo não será abandono
que o dia seguinte é um útero
um vórtice de carne e travesseiro
e que talvez suas orelhas virgens possam entender, atender a ligação
30 junho 2011
30 dias
o esôfago: cartilagem acetinada que carrego dentro
são latidos e gemidos : meu filho meu dono meu tudo nao escape
não se perfume tanto no abandono
30 dias em que palavras foram doces amestrados
ametistas corroíras presas no jardim
30 estrangeiros estirparam meus ouvidos
e a falência de meus órgãos
sou um menino descampado
um príncipe pequeno
retificado na educação
e nos olhos ingênuos
30 maio 2011
18 maio 2011
A pressa
é uma pedra
não sou Sísifo
embora pareça
a pressa me acontece
mais como a montanha:
subir e descer
a pressa é um disfarce
um silêncio em máscaras
que carrego feliz
a pressa me acontece
no lugar da perda
08 abril 2011
Pro Mittere
Ilustração: Goya
30 março 2011
El perro
a casa cercada por cachorros
por dentro
un perro se remorde
remorso ancestre
dos tempos em que
as quatro patas
sabiam a terra
sabiam os pelos da barriga,
do sexo, das costas.
II
a casa cerrada para os cachorros
à porta,
olham para o bípede
ladram ao traidor
el perro se ressente
senta-se no sofá
e escreve um poema elevado
homem que é
23 março 2011
não tem feriado: tem fome
e tem fácil
meus pedaços nobres
a serem oferecidos às visitas
e meus miúdos
para o ensopado da segunda-feira
Ilustração: Lucian Freud
18 março 2011
a palavra vesga
agachou-se
acamou-se fêmea e foice
439 vezes
a palavra nesga tentou ser mais
não pode:
acalmou-se
mosca sobre a mesa
esperando a morte
vinda pela pazinha de plástico
08 março 2011
16 fevereiro 2011
19 janeiro 2011
Porcelana
Letra minha, música de Rico Vogel, o guitarrista da banda Lady Murphy
15 dezembro 2010
que frio fia-se sobre o outro
tempo dos avessos agora
a dor crespa da espera
e
a espera vesga do fim
logo ali o apocalipse
os quatro cavaleiros
e suas espadas festivas
logo ali um sol menor
mentindo-se verão
e a pele cada vez
mais branca
transparência
teu nome é o soco
que consigo pronunciar
22 novembro 2010
Dia 23/11 - Lançamento Crônica de Gatos
Reforçando o convite para o lançamento do livro "Crônica de Gatos", uma parceria minha como a ilustradora Regina Marcis
Livro: Crônicas de Gatos Local: Estação da Memória (antiga Estação Ferroviária) Rua Leite Ribeiro s/n Dia: 23 de Novembro de 2010 - a partir das 18:30h
Aguardo vocês lá
abraços
Rubens
31 outubro 2010
Clara Nunes - "À Flor da Pele" (Fantástico, 1978)
ouçam, enquanto o poema não vem...
25 outubro 2010
19 outubro 2010
15 setembro 2010
Crasso
a cópula desdentada entre capins
os mastins catingando esteiras
a vida esfregando-se na morrinha cotidiana
azul lá fora, preconizam
aqui dentro os porcos chafurdam
fossem serpentes, fossem cavalos, rinocerontes
mas porcos e seu olhar vesgo
sua cambaleante banha e brancura
azul lá fora, preconizam
não tenho escolhas
só escolhos
levarei meus porcos à beira-mar
05 setembro 2010
Vittório
meu pau em estado vegetativo desarma a pouca hombridade que me resta
o reumatismo evidencia a ruptura
os rompantes duros de antanho são memórias
histórias inaptas ao devir
tenho medo e silêncio
nesse domingo fragoso
tenho vísceras presas
no quarto de banho
tenho carregosos espasmos quando nu
sei de meu corpo desinchado
dos poros ocos
das pleuras e cardiopatias
desse retumbar por dentro
entre catingas: boca estômago intestinos bexiga pés sovaco
tudo exala a violência incolor da morte
porta de vidro para o invisível
23 agosto 2010
18 agosto 2010
será que serei um desses velhos excursionáveis?