11 novembro 2008

A Confissão










Conto que deu origem a peça "A Confissão"

A confissão

Nunca mais o vi, não, tenho poucas saudades dele, na verdade tenho nada de saudade, apenas a lembrança dos dedos, eram máquinas artísticas aqueles dedos, febreando-me por baixo, não sou mulher de apelos fáceis, não é qualquer mão que rapta minha pele para a loucura, mas aqueles dedos! Pareciam mais úmidos que o eudentro, pergunta-me se eu o amei? Digo que não, é pouco o amor, é pouco para saciar-me, homem nenhum chegará ao meu poçofundo, homem nenhum tem competência para isso, lembro que em certo tempo de dúvida, experimentei uma mulher, é nos iguais que estão os mistérios, foi o que me disseram, ela era delicada demais para minhas carnes, vaguei em muito até encontrá-lo, era tímido, não olhava nos olhos, custou adestrá-lo, custou fazer com que me possuísse fêmea que sou, não tinha pecado, mas tinhas os dedos, matéria bruta, eu os lapidei nos quentes, eu os fundi nos baixos, os dedos sobrepuseram o todo corpo dele, não pedi mais beijo, saliva, esperma, estes adubos da paixão, pedi apenas o silêncio das mãos soleando-me, já fui muita coisa viva em mão de homem: cabra, égua, vaca, cadela, mas ele me deu a música: na mão dele virei cítara, harpa, delgada lira saciando Eurídice, deliro, sei que desvio, agora que estou só percebo o quanto aquelas mãos me alimentaram, se eu não fosse tão vil, tão mínima nos sentimentos, estaria ainda recostada no que ele tinha de melhor, mas como disse, sou avessa às rotinas, começou a me perguntar coisas, a me pedir coisas que andam na cabeça das gentes tontas, que coisas? Ora, o amor, o casamento, uns filhos pela casa, estes infortúnios da normalidade, estas noites na frente do sol, tive que afastá-lo, destruir suas alegrias, era homem demais para meus dias, impossível, a sorte tem que sempre vir com o entulho, o útil vem sempre com o inútil, homens são assim, pensam, querem coisas, falam demais, pedem sacrifícios, não sou mulher que conceda, eu quero sempre tudo, acho que isso é uma música, não sei mais o que falo, sei que me doem os quadris, me faz falta o fogo dos dedos, me faz falta o deslizar dele entre os lábios, isso, os de lá embaixo, os de cima servem para falar, os de baixo para saber que um coração nunca é neutro, eis minha desgraça e descrença, um coração nunca é neutro, o meu, repudiador nato, gladiador feroz, não conseguiu, se viu banhado em miséria, vítima, perdoe-me se choro, descobrir isso, arremessar isso para fora, não é fácil, o coração nunca é neutro, nunca mais as noites em luxúria, aqueles ventos, aqueles vermelhos, aqueles dedos comendo-me, está certo, eu menti, tenho muitas saudades dele, tenho muito amor por ele, tenho em mim um rio de desejo que ele volte, ele esteve no meu poçofundo, os dedos dele chegaram lá, perdi a virgindade com aquelas mãos, está rindo do que? Não falo da virgindade aparente, o hímen físico, falo daquela escondida, nas funduras, estou calma, bem, eu fui pedir, eu fui, joguei-me arrependida, disse que agora não, que agora tinha voltado as esferas da vida, mulher nova, grávida, casa, filhos futuros, carro na garagem, não usava mais os dedos, apenas a carne inútil da pélvis, desperdício, gritei, desperdício, eu te fiz, eu te criei, eu te arquitetei, e agora dormes com essa sem-nada, essa sempre-igual, riu um pouco de mim, por isso eu o matei, não sou mulher de razões, mas uma eu tenho, se não posso ter os dedos, outra qualquer não vai ter, estão aqui os dedos, pode enterrá-los com o resto do corpo, já me saciei com eles, não foi como antes, mas me vinguei, dele que não voltou pra mim e de mim que o expulsei, as pessoas se enganam e pagam por isso, um coração nunca é neutro e eu paguei por isso.





Rubens da Cunha



FOTOS: ENÉAS LOPES

16 comentários:

Vâmvú disse...

Lindo conto, Rubens. Parabéns! Deve ter ficado ótimo na adaptação para o palco.
Muito bom mesmo.
Abração

Anônimo disse...

rubens!
amei amei amei!
amei²

bjus!
(até me inspirei no meu blog)

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Denso relato, com nuances típicas de um longo poema. Monólogo visceral para voz feminina, sem dúvida. Se assim não fosse não teria se transformado em texto teatral.

Pincei aqui um pedacinho que achei muito legal dentre muitos: "(...)não é qualquer mão que rapta minha pele para a loucura, mas aqueles dedos!"

Um belo trabalho, Rubens!

Jura Arruda disse...

Se no palco uma Angelapoema fisicava suas palavras, o texto escrito não é menos rico. Revivi tudo! E tanto mais o choro gritado dessa mulher repleta de vida e morte. Estou mais seu fã ainda, Rubens!

Anônimo disse...

Foi desenrolando, com suspense. Acho, que a encenação foi confissão legítima, com uma iluminação do cacete. Algo meio claustrofóbico. Pena morar longe, mas não tanto... Bem, é isso! Abração!

Márcia Maia disse...

que maravilha, rubens! amei!
beijo por ele.

Hélio Jorge Cordeiro disse...

hjcordeiro@hotmail.com

Anônimo disse...

Caro Rubens,
Às vezes, para escutar, é preciso tapar os ouvidos e cerrar um pouco os olhos, como fazia Beethoven.
Eu gosto de boa música.
Parabéns!
Um abraço da Adriana.

Unknown disse...

Rubens, me falaram muito do texto e da peça, estava louca pra ir ver, pena que não deu.
Já posso dizer ao menos que o texto é incrível.

Unknown disse...

Rubens, me falaram muito do texto e da peça, estava louca pra ir ver, pena que não deu.
Já posso dizer ao menos que o texto é incrível.

Anônimo disse...

Poeta... eu quero... eu quero...

hahahahaha... Lindo... outra hora conversamos sobre esse texto... te espero no msn ok...

bjos

Cláudio B. Carlos disse...

Rubens!

Muito bom!

Grande abraço,

*CC*

Lua em Libra disse...

Rubens!!
quando eu penso já ter lido o melhor de ti, eis que me surpreendes com este conto. Quisera ter assistido a peça, deve ter sido fantástica em todos os melhores aspectos. Abraços

Anônimo disse...

As imagens belas tantas,,,
Por bem o conto deve ter caído em boas mãos.
Aliás, da respiração mais ofegante e melódica enquanto Rubens da Cunha, o escritor, músico frustrado. Parabéns pela transfiguração!

Abraços e reproduzidas invenções!

ítalo puccini disse...

maravilhoso!

de prender o fôlego!

parabéns, rubens.

abraço.

Hélio Jorge Cordeiro disse...

Donde andará o Rubens da Cunha?