26 maio 2006

Sonâmbulo

Quando eu acordar e me perceber pedra atirada em pássaros, aceitarei, acertarei meu destino?

23 maio 2006

Lintania I

Inveja às mulheres e seus dogmas,
aos homens e sua tântrica violência.
Inveja de viver pensando pássaro
estando cru o desejo de ser vôo.

Inveja aos engenhos infantis,
aos espectros no rosto dos senis.
Inveja de viver pensando lobo
estando nu o futuro de ser cão.

Inveja às palavras habitáveis,
aos temporais desfeitos na cabeça
com a fuga contínua dos olhares.

Inveja aos cuidados da loucura,
aos gestos construídos no porão
com o cinzel agônico da morte.


® Rubens da Cunha

18 maio 2006

Péricles Prade

Livro: Os Faróis Invisíveis
Editora Massao Ohno
1980

CÍRCULO DE MIL VÍCIOS PROPÍCIOS

O vício é medula
de suposto sabor

A ele me devoto
com redes e salamandras
do sonho decapitado nas cisternas

resistindo sempre

quando os mistérios do céu da boca das aves
sufocam o anjo distraído com as penas do sul



Na quinta porta
os ossos lacrados pela pesta

Na quarta
o odor do vôo
em desalinho

Na terceira
as vestes de escama falsa

Na segunda
o santo próspero
e seus crimes

Na primeira
os olhos do guerreiro albino



O corpo desconhece a superfície
nas esferas limitadas pela dor

Não é o pássaro zangado
a versátil criatura

Nem balão veloz
suprido pelo canto

E anjo não se presta
a vôo tão luminoso

O corpo desconhece a dor
porque o brilho apodrece o manto



Nos fornos de tantas formas
refiz terra e sais
com as mãos de vários polvos
Criei o sonâmbulo
dos hemisférios vigentes
perseguindo a si próprio
círculo de mil vícios propícios

Cabeça oval/três antenas de cera
é o quanto basta
para mágicos redimidos
Volta-se o pião
seguindo o mesmo caminho
porque só assim vale a experiência



Tronco algum é mais belo
do que o de ouro
entre as costelas de estanho
oh meu servente caiado
sem falhas e ousadias

Membros todos os membros
sob as árvores musicais vizinhas
e no bolso das aranhas separadas
antiquíssimos espinhos deste mal

® Péricles Prade

16 maio 2006

Breves

Corpo:

caixa de escombro e carinho.


Tanto tato:

nenhum toque capaz de desordem.


Nudez por dentro é mais difícil

® Rubens da Cunha

Ilustrações: Miriam Topolar / Iole de freitas

13 maio 2006

DA SÉRIE: AS PALAVRAS FALAM - 1

SAUDADE:
Sou uma palavra solitária. Dizem que eu só existo em português. Que outros idiomas não conseguem expressar os significados que carrego com apenas uma palavra. Precisam de frases, de expressões inteiras. Eu sei que estou em todos, nos índios norte-americanos aos chineses. Mas só existo concretamente em quem fala o idioma português. Isso me assusta, me condói, queria ser universal. Ter muitas faces como o meu amigo amor, mas não consigo. Existo apenas aqui, nesta língua obscura. Não compreendo porque tive este azar na vida.

ESPERANÇA:
Sou a muleta dos humanos. É isso que eu sou. Vivem e se agarram em mim como se eu fosse salvá-los. Os humanos me têm como sinônimo de Deus, quando sou bem é outra coisa. Minha maior raiva é que eles me colocam nuns poemas muito ruins rimando com criança. Sempre alegre e sempre feliz. Estes humanos me dão nojo. Se soubessem quem eu realmente sou, estes pulhas não me sentiriam.

VASTIDÃO:
Eu sou eu. A grande. A perfeita. A única. Carrego nas costas todas estas coitadas pessoas. Cortadas se não me conhecem. Sou amada por poetas nômades, bonequeiros, músicos, pintores. Eu sou eu. Para me conhecer melhor faça igual ao meu amante, o silêncio: percorra-me sem restrições, xingamentos. Acaricia-me que eu lhe mostro o infindável.

SE:
Não prestam atenção em mim. Quase nunca, quer dizer. Mas quando se bifurcam em dívidas, os humanos aí me percebem. Se eu for por aqui, se eu fizesse isso, se eu não tivesse tomado aquela decisão. Aí eu existo na fala deles. Não gosto, sabe, ser escrava das escolhas, dos arrependimentos. Eu queria era ter vida livre como o Sol, o Si, o Só, o Sim. Vivem e não dependem de nada.

LÁGRIMA:
Existe alguém mais bela do que eu? Tá, eu sei que isso é frase de bruxa, mas sinceramente, existe alguém mais bela do que eu, quando escorro cachoeira no rosto dos infantes. Ou me seguro nos cílios das mulheres abandonadas? Fala! Se você encontra palavra mais intensa, mais líquida? Nem o mar, meu amor, nem o mar tem os meus sais e a minha beleza.

VIDA:
Sou tímida, não gosto muito de falar de mim. Dizem que sou importante, que sem mim nada viveria. Tenho cá minhas dúvidas. Desculpe, sou tímida. Não gosto muito de falar de mim. Não me acostumei com toda esta importância que me dão. Desculpe, sou tímida.

08 maio 2006

Unção


Ele chegou. Foi um acaso, um susto do destino. Há tempos esperávamos. Não que ele tivesse prometido jamais retornar, mas nossas esperanças secavam dia-a-dia. Agora, tudo é passado. Ele chegou. Ainda não fomos ter com ele. Um pouco de medo trava nossos pés tão desacostumados da alegria. Ele chegou. Sabemos disso, já umedecemos os dentros. Está sentado no sofá, ali na sala. Daqui nós podemos vê-lo. Parece bem. Um olhar agachado, a barba por fazer, revela-se cinza, a boca continua tênue. Parece tão nervoso quanto nós, não pára de mexer as mãos, os pés retumbam o chão. Ele chegou. É hora de nos apresentarmos, dizer estamos aqui, olhoa como crescemos e somos os mesmos ainda. Ele está nos vendo agora. Que olhar é este? Percebemos no mesmo instante suas intenções. Nossas pernas estacam. Então veio somente para nos ver? E o ficar? Não sabe, vontade muita, mas não pode. Tem exílios no sangue. Aqui sempre será um clandestino. Promete jamais retornar. Pede que vivamos sem ele e sem a possibilidade de sua próxima chegada. Beija-nos. Unge-se em saudade e parte.


® Rubens da Cunha

Ilustração: Consuelo Bustillo Penunuri

05 maio 2006

Lepra

Unhas. Dedos. Mãos. Braços. Cotovelos. Antebraços. Ombros.
Unhas. Dedos. Pés. Calcanhares. Tornozelos. Pernas. Joelhos. Coxas.
Nádegas. Anus. Sexo. Barriga. Costas. Peito. Mamilos. Axilas. Pescoço.
Orelhas. Queixo. Nariz. Pálpebras. Olhos. Sobrancelhas. Boca. Dentes

Maçãs do rosto. Nuca. Testa. Couro Cabeludo. Cabelo. Crânio.
Pensamento.


® Rubens da Cunha

04 maio 2006

Péricles Prade

Livro: Jaula Amorosa
1995

PROTEÇÃO

Entre as rãs de ontem
o parque se subleva

É Ursa Maior nos dedos
a galaxia se despindo

Vamos puxar as cordas
ou os laços de linho?

Protejei-me Sansao
que de cabelos não me basto
nas águas do desencanto


UM RETRATO

O rio e suas teias de vinho claro. Ninho
submerso de ametistas nas veias do suicida
Cão em chamas, os dedos estrelados
como tatuagem noturna

No alvo
o desenho de Maio
é fruto do sangue

Por que o lado esquerdo do Pão
agoniza? A fome no inferno é o alimento
dos insensatos

Faustus tem no bolso o retrato Dele. O perfil
de mármore voltado para o Sul, os olhos
e a esperança sobre a lousa, onde o giz
recomeça os dentes do Vampiro


® Péricles Prade