31 março 2006

Três


Açougueiro, mato porcos. Enchi. Preciso de espaço. Amolo a faca no rebolo antigo. Enfio abaixo da minha costela esquerda. Atrapalho-me um pouco no corte circular. Nos porcos, esvaziar é mais fácil, estão pendurados, basta um corte reto, de alto a baixo e o vazio acontece. Eu estou em pé, meio curvado. Com calma, corto toda a barriga. Pelo buraco, retiro o estômago, intestinos, fígado, rins e demais quinquilharias. Puxo os pulmões e, com certa agressividade, o coração. Costuro a barriga de volta. Retorno bem mais leve ao trabalho.
Rubens da Cunha
Ilustração: Jane Alexander

29 março 2006

Autores Catarinenses - Péricles Prade

De acordo com o poeta Marco Vasques na Revista Agulha
Péricles Prade é: "Figura marcante no cenário nacional, Péricles Prade é respeitado como intelectual, pesquisador, advogado e poeta com êxito em todas as áreas em que atua. Ao falar sobre a vida, diz que sua maior ambição é servir ao próximo e se confessa um apaixonado pela humanidade. No que tange sua obra é enfático: “Minha poesia é para iniciados”. Autor de dez livros de poemas, outros tantos no campo jurídico, ele construiu sua poética sob as bases do ocultismo, da cabala, dos mitos e de uma erudição que desafia e provoca o leitor."


Dono de uma obra vasta e segura, Péricles vai ser semeado aqui no Casa de Paragens aos poucos.

Começemos, pois:

Livro: Ciranda Andaluz
Ed. Letras Contemporâneas
2003


ALHAMBRA SEGUNDO IBN AL-JATIB


Ao fundo
a Serra sol nevado.
Esplendor Real
sobre os árabes jardins
do mundo.


Alhambra, a Roxa,
mesmo sendo branca
a aura medieval desses palácios.


Roxa é a cor antiga,
ali, onde a luz da tocha
como um Deus ilumina
o cosmo recriado.

27 março 2006

Dentro

Tantos olham-me.
Tantos colhem-me imaturo.

Tenho por eles o que faço por mim:
saídas laterais,
rotas de cobiça,
fingimento de boca.

Dentro, a palavra-exílio
intensifica meu exercício de poeta.

® Rubens da Cunha
Ontem, pela primeira vez fui puta de rua. Não queria. Não é bom pra imagem. Mas não deu. A zona em que eu estava foi fechada pela polícia. Não tenho mais 20. Tô com 45. Não fui aceita nas outras zonas. Fui pra rua. Consegui um cliente já na primeira noite. Foi bom. Pagou direito. 20,00R$. Tudo em nota de cinco. Numa delas estava escrito: “Faz poesia e canta verso”. Lembrei do tempo de escola em que eu gostava de poesia.

22 março 2006

Seis

Dentro do porão, escavo perguntas. Se aqui é escuro, lá será luz? Se aqui é úmido, lá será seco? Conheço somente arredores: frio domesticado à vela, umidade tempo todo, instinto sêmen pelas paredes, repressão mistério que não sei como nasceu cresceu. O que me repreende? O que me lançou inseto neste escuro? O pai e suas prostitutas? A mãe víbora igreja? O que me gestou pariu? São nadas de resposta corroendo, corroendo, equipando meu corpo vergonha. No alto, sótão onde estão libertos prazeres, onde outros desfilam girafas pélvicas, amanhecem alimento resto por sobre lençóis. Não eu. Haverá outros muares iguais a mim carregando um porão teso dentro da cabeça? O que me resta, entre uma pergunta e outra, é atrever-me instinto, destravar-me quase nos momentos em que abro a porta do porão e vislumbro azuis proibitivos. Pouco tempo dura a porta aberta. Tenho desde sempre o descostume do alto.
® Rubens da Cunha

20 março 2006

tempo de nuvens



a voz cinza das cabras
pasta noites
passos abertos
aves mortas

acima
a lua dos infindos
tudo espia
tudo expira em silêncio



ps. Poema feito a partir do quadro de Salvador Dali, num exercício proposto na oficina POESIA DRAMÁTICA, TEATRO POÉTICO de Telma Scherer - Aqui o blog da moça.

16 março 2006

De safra mais antiga...



O DESPREZO – SINÔNIMO DO ESQUECIDO

I
Senhora de pernas débeis,
a memória pouco suporta
caminhar nos estradões
inconfessáveis do sentir.

Propícia a tropeços,
fraturas e miragens,
é preciso dessendentá-la
antes que seque.

Antes mesmo que os ossos peçam,
é preciso descansá-la
à sombra do desprezo.


II
Menoscabo é caber menos
nos odres da lembrança.
Ser decomposição.
Deveras podre se pouco visto.

Conter-se, às escondidas,
na verdade incontida
daquele a quem desimportâncias
coabitam em disfarce.

Menoscabo é acabar-se.
É trazer atrás da máscara
somente rumores de rosto.

III
Incluir nos intermeios
da cabeça, não só a incúria,
totem abstrato do desapego,
mas toda a sorte de espera.

Agüentar nos ombros
o pesar vicioso da mudez,
como se de escombros
fosse densa a carne.

Ter nos eitos incinerados
da alma, não mais que a alma
de roedores pequenos e mortos.


IV
Desprezar: doar-se em
viagens no desconforto
da razão. Ser Visagem.
Assombração plena.

Imprecar esquecimentos
nos corredores da dor.
Carregar correntes. Tormentas.
Sancionar sustos à pele.

Descrer em horas e orações.
Transitar inferno em todo
menosprezo que não sabe rezar.

® Rubens da Cunha
Ilustração: Gary Kaleda

14 março 2006

Dez



A cada mês, eu a colocava nua dentro do quarto e esperava que ela menstruasse. Olhava para o vermelho e conseguia ver a intensidade do amor que a ela tinha por mim. Em certos meses, o amor diminuía, então eu aumentava os carinhos. Da última vez que a coloquei dentro do quarto, nada aconteceu. Ela tinha secado. Finalmente você está livre, eu disse. Empurrei a mulher para fora, tranquei-me por dentro e, mensalmente, comecei a sangrar.

® Rubens da Cunha

Ilustração: Rufino Tamayo

10 março 2006

A Você que me visita

Teus demônios são de inferno que desconheço. Quanto a mim, expulsão total do país das maravilhas. Sem metades, inteiro. Gosto da memória, ela me acaricia, pena que por pouco tempo, por isso crio mundos, fantasmas, porcos, cevada, capivaras, animais e plantas. Pessoas não gosto, coitam-me demais pelos flancos. Tenho medo. E com medo não durmo. Arrependo-me por instantes, queria crucifixos, pregos carinhado carnes. Agraça-me teus gritos. Devolvo-te meu silêncio. Faça dele tua agonia e tua mentira. Vai te fazer bem um analgésico.

Rubens da Cunha

Infância

Eu dei brasas para as rãs confundirem com vaga-lumes e engolirem a luz por engano.
Eu cirurgiei muitas cobras-cegas, eram tão estúpidas.
Eu destruí ninhos e ninhos de anus.
O que fazer se a idade adulta me deu piedades?
Se hoje, espanto mariposas, vespas, formigas do meu açucar,
mas não mato estes incômodos vivos?
Depois de crescido, transferi-me ao ínfimo,
ao universo rasteiro dos insetos e anfíbios.
Agora é Deus quem joga as brasas.
Tenho o esôfago em carne viva.
Sempre acredito que sejam pirilampos.
Ainda tenho certas ingenuidades.
As queimaduras internas eu agüento:
ter carvão no estômago aplaca em muito a fome.
® Rubens Da Cunha

09 março 2006

Avencas



O caminho está ali, ao sol.
O corpo, preso à cadeira,
descomunga qualquer luta.

Desvirtua a eucaristia do futuro.

O que interessa é a preguiça
e seus bichos lerdos.

O tempo não come abismos.
Vomita-os.


Despensa. Desordem.
Na veia: escuros de úmido,
latências,

todos os cantos condoendo aranhas.
Nos dias de domingo,
o esforço diagramado de ser inteiro.

Ignorar o feitio da rasura,
do puído,
do que se locomove entre os baixos.

Instantanear um sorriso.
Aprender a ser anfitrião de desconhecidos.



Atravessar a meia-noite
esperando a estiagem.
O esteio.
O cavalo selado da amargura.

Acompanhar os risos.
Incrementar o riso com uso diverso:
trovão, um ou outro desapego,
toda a madurez das laranjas.

Estar por ali, inseto,
entre o florescer dos ipês
e a morte das avencas.

® Rubens da Cunha: do livro inédito "Casa de Paragens"
Ilustrações: Irene Ann Mills

04 março 2006

Oito

Tenho ciúme demais. Tudo é perda. Tanto defeito. Tanta coisa ruim pode residir num homem. Em mim, o cíume, esta cisterna, este escuro caimento. Sempre. Criança, nunca dividi brinquedos, brincadeiras, folguedos. Adolescente, escondia discos, revistinhas em quadrinhos, até as revistas pornográficas feitas para a divisão, eu escondia. Adulto, a paixão engenhou minha queda. Um não respirar, um morder de lábios constante, uma incapacidade de esquecer a necessidade do junto, do perto, da certeza. Por certo tempo consegui submetê-la a isso. Depois a praga: o ciúme do pensamento, o nunca saber se estar ali era o que ela queria, a impossibilidade de descobrir a verdade. Tive que matar. Estirada sobre a cama, a mulher nada mais pensa, nada mais trai, nada mais traz a mim. Agora sou isso, um homem derruído. Dentro: a culpa começa a guerrear com a inocência e as certezas do ciúme. Talvez ganhe. Talvez eu puxe o gatilho contra mim.
® Rubens da Cunha

03 março 2006

Hoje fiquei sem palavras. Busco-as na única escritora (entre homens e mulheres) que me silencia. A Hilda Hilst, minha fidelidade e obsessão eterna.

Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?


Hilda Hilst
(Da Noite - 1992)

02 março 2006

num verão quase findo, releio versos há muito sublinhados

"Distingui a beleza mexendo sempre no escuro. Ela será minha caça, meu poder sem semelhança quando a tiver nas mãos"

"Tanto atrapalha o sangue, dogma de um punhal na solidão pura"

C. Ronald em "Cuidados do Acaso"

(eu amo este homem)